Meu disco preferido do Queen ficou quarentão

 

 

 

Eu tinha treze anos quando “The Works” foi lançado. Lá fora ele saiu em 27 de fevereiro de 1984, aqui saiu algum tempo depois, não sei exatamente a data. O que posso atestar é que este é um dos primeiros discos que comprei intencionalmente, sabendo que queria ouvir exatamente aquilo. Minha formação musical até aquele momento era consequência do que se ouvia lá em casa, a saber, trilhas sonoras de novelas globais, coletâneas de Disco Music, discos de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gil e Gal, além da coleção de Roberto Carlos, do meu avô. E, claro, o que tocava no rádio. Foi através dele que conheci as bandas e artistas que me iniciaram nessa paixão pela música, que me trouxe até aqui, tanto tempo depois. Discos como o “Synchronicity”, do The Police; “Colour By Numbers”, do Culture Club, “Cinema Mudo”, dos Paralamas do Sucesso e “The Works”, do Queen, são diretamente responsáveis por este início de caminho. Vieram muitos outros logo em seguida, mas este quarteto fantástico leva os louros iniciais sozinho.

 

Além do rádio, havia os clipes. Inicialmente passavam no FMTV, programa que ia ao ar pela TV Manchete, e no BB Videoclipe, que passava na TV Corcovado, afiliada da TV Record. E só. Quando muito importantes, eles passavam no Fantástico, mas este espaço era mais para produção nacional, com clipes feitos especialmente pela Globo e seu time de profissionais, chupinhando a nascente estética que vinha de fora. Pouco tempo depois, a emissora colocaria sua própria atração para o assunto, o Clip Clip, que ia ao ar nos sábados à tarde, antes do programa do Chacrinha. Como você pode constatar, era um mundo totalmente diverso do que existe hoje. Certamente vi o clipe de “Radio Ga Ga” na Manchete e, a partir daí, a canção foi para as rádios cariocas, tornando-se um hit. Além dele, “I Want To Break Free”, com a banda vestida em trajes femininos, causou muito burburinho. E “It’s A Hard Life”, herdeira da tradição baladeira-operística do Queen, também teve clipe espalhafatoso e genial. E pronto. Foi o suficiente para “The Works” ganhar o status de maravilha total na minha mente de quase quatorze anos.

 

Mesmo tanto tempo depois – quarenta fuckin’ anos – o disco ainda me desce redondo sem que eu precise fazer reavaliação de qualquer espécie. O namoro firme do Queen com a música mais pop, deixando seu hard rock inicial de lado, sempre foi bem visto por meus olhos. No ano de 1984 eu comprei uma revistinha especial da banda, com toda a história e discografia comentados e estudei aquilo como se fosse uma matéria para prova final. “The Works” chegava como um trabalho não totalmente bem visto pelos fãs mais tradicionais do Queen. Pudera, ele ampliava o flerte com a música eletrônica, que se iniciara em “Hot Space”, tido como “pior disco da carreira do grupo”, mesmo que contivesse o hit global “Under Pressure”, com David Bowie. Sendo assim, era temerário para essa galera ver que a banda insistiria neste caminho. E toda essa expectativa e fracasso com “Hot Space” quase custou a existência do próprio Queen, visto que as sessões de gravação de “The Works” aconteceram em meio a porradarias homéricas e abandonos de barco sucessivo. Mas o resultado deu ao grupo o Olimpo de um pop rock global que não mais existe.

 

Com a MTV tendo iniciado atividades meros três anos antes, o Queen apostou com força no formato videoclipe. A banda sempre gostou disso, chegou a ser pioneira no assunto quando filmou um curta para divulgar seu sucesso “Bohemian Rapsody” nos anos 1970 e se manteve próxima do vetor imagético ao longo dos anos seguinte. Além disso, o Queen sempre pareceu sem paciência alguma para rótulos restritivos. Seus álbuns eram sempre muito diferentes entre si. Por exemplo, “The Game”, de 1980, um dos melhores de sua carreira, abraça esta mesma música comercial com alguns anos de antecedência, talvez com um pouco menos de ímpeto. Quem ouvisse “Crazy Little Thing Called Love” ou “Another One Bites The Dust”, ou mesmo “Don’t Stop Me Now”, do disco anterior, “Jazz”, pode constatar que Freddie Mercury, Brian May, John Deacon e Roger Taylor não eram “apenas” uma banda de rock. Todos compunham, todos cantavam, todos eram donos de personalidades fortes, ou seja, não devia ser fácil fazer parte do Queen, mas devia ser sensacional.

 

Sendo assim, “The Works” era a resultante desse processo. Brian May lançara seu “Starfleet Project” alguns meses antes (a gente falou disso aqui), Roger Taylor já tinha lançado um álbum solo em 1981, chamado “Fun In Space”, enquanto Freddie em breve soltaria o seu primeiro, “Mr Nice Guy”, em 1985 (a gente também falou dele aqui), ou seja, o Queen ficara pequeno para eles. A diversidade que os discos do grupo passaram a ostentar mostra como os estilos eram distintos, mas não conflitantes. O primeiro single do álbum, “Radio Ga Ga”, um épico tecnopop guitarreiro, foi o cartão de visitas para o mundo. Os quatro surgem dentro de cenas do filme “Metropolis”, do cineasta alemão Fritz Lang, e lida com essa ideia antiga de futuro, acenando a livros como “1984” (que “fazia aniversário naquele ano) ou “Admirável Mundo Novo”. O grupo ensaia uma saudação de obediência, o bater de palmas ritmado em meio ao refrão de “Radio…”, que, na verdade, é uma ode ao rádio e à sua importância como meio de comunicação ao longo do século 20.

 

Mas o disco era muito, muito mais que seu primeiro single. “Hammer To Fall”, uma canção sobre o perigo das armas nucleares num tempo em que elas poderiam, sim, cair a qualquer momento, surgia como um rockão pesado, porém melódico, como os que o Queen parecia fazer com o pé nas costas. “It’s A Hard Life”, prima de “Don’t Stop Me Now”, “Somebody To Love” e “Bohemian Rapsody”, utilizava lirismo glam para injetar força num baladão operístico que traz fraseados de “Vesti la Gubba”, ária da ópera “Pagliacci”, de Ruggiero Leoncavallo. Lembro de ouvir essa canção lá em casa, a plenos poderes da vitrola que havia na sala, e minha avó falar: “Olha, é a “música do palhaço”, fazendo identificação imediata. “I Want To Break Free” era tecnopop feito sob medida para as paradas de sucesso, “Tear It Up” era outro rockão, mais pesado ainda que “Hammer To Fall”, enquanto “Machines (Back To Humans)” exibia domínio do uso dos vocoders e efeitos eletrônicos vigentes. “Man On The Prowl” surge como irmã mais nova de “Crazy Little Thing Called Love”, com Freddie tentando imitar Elvis Presley, num arranjo rockabilly em câmera lenta. E havia também a minha predileta do álbum: “Keep Passing The Open Windows”, com um piano maravilhoso e uma melodia lindíssima, talvez uma das menos conhecidas e saudadas do álbum, junto com a canção de encerramento, a pacifista e tecnopop “Is This The World We Created?”.

 

“The Works” confirmou o sucesso global que o Queen já fazia e deu um carimbo de certificação ISO 9001 para o grupo. Com tantas canções ótimas e tão bom de palco, o quarteto caiu na estrada com uma turnê global, que passou pelo Rock In Rio, em janeiro de 1985. Foi o “sim” do grupo que deu segurança para que várias outras bandas assinassem com o festival. Os shows que o Queen fez em solo carioca naquela época foram da “The Works Tour”, sendo que, na versão deluxe do álbum, lançada em 2011, há um registro de “It’s A Hard Life” feito no festival.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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