“Erasmo Esteves” é um raríssimo disco póstumo e feliz
Erasmo Carlos – Erasmo Esteves
40′, 14 faixas
(Som Livre)
Quando lançou “O Futuro Pertence à Jovem Guarda”, Erasmo Carlos vivia uma fase fértil como compositor. Havia uma série de projetos em andamento – parcerias de todos os tipos, com um monte de amigos e novos colaboradores, num time que ia de Arnaldo Antunes a Tim Bernardes. Uma vez concluídas essas canções, ainda embrionárias, seriam colocadas num álbum, que deveria sair em 2023. Infelizmente, o Tremendão nos deixou no fim de novembro de 2022 e não teve tempo de finalizar essas canções e lançar seu disco. Até agora. Marcus Preto e Pupillo, produtores do álbum, junto com Leo Esteves, filho de Erasmo, enviaram os rascunhos para os respectivos parceiros, pedindo para que os terminassem, compondo melodia para as partes já escritas. O resultado é esse simpaticíssimo “Erasmo Esteves”, que traz as tais parcerias, devidamente concluídas, compondo uma ótima amostra dessa produção final do homem, confirmando aquilo que dissemos logo no início do texto. A fase de Erasmo era ótima. E agora a gente pode comprovar isso.
As canções refletem o bom momento de Erasmo, não só na criação, mas na vida, propriamente dita. Vivendo com Fernanda Pessoa desde 2019, após dez anos de namoro, o Tremendão estava em paz e tinha na pedagoga sua musa inspiradora mais recente. Talvez por isso, a maior parte das faixas que compõem o álbum sejam derramadas declarações de amor, não só à esposa, mas à vida, sem perder, no entanto, a qualidade de grande memorialista do rock nacional, encontrando espaço para falar da Tijuca, seu lugar de origem e de grande parte das figuras-chave do rock feito por aqui, ele mesmo à frente dessa turma. Além disso, o amadurecimento de Erasmo como letrista – ele sempre foi um dos maiores da nossa música – ia de acordo com essa veia biográfica. “Tijuca Maluca”, faixa que abre o álbum, tem palavras complexas que vão construindo um memorial detalhado de sua juventude e de como ele cresceu e se tornou homem, compositor, cantor e tudo mais. É uma bela sequência para “Largo da Segunda-Feira”, pérola delicada de seu cancioneiro, gravada em 1971, quando ele chegou aos trinta anos. Emicida e Rubel ajudam a trazer a canção para uma modernidade samba-rock que faz muito bem à história e à canção.
Com este cartão de visitas, “Erasmo Esteves” abre suas portas para o ouvinte como se fosse um museu divertido e interativo. “Assim Te Vejo Em Paz”, balada soul romântica, com melodia de Roberta Campos, que vem em seguida, tem a impressionante voz de Jota Pê, com um registro peculiar e adequado ao ritmo lento e belo que o arranjo promove e dá espaço, com a letra derramada “meu amor é fraco porque é muito forte”, inegavelmente tremendona, observadora das miudezas da vida. “A Menina da Felicidade” foi o primeiro single do álbum, lançada no fim de 2023, uma das duas a trazer a voz de Erasmo, aqui duetando com Gaby Amarantos. É um samba light, algo que tem ares sessentistas, mais pra Jorge Ben do que para Erasmo, mas ainda dentro da área de influência do homem. “Minha Bonita Primavera” tem melodia e vocais de Tim Bernardes, com a introdução de uma pequena demo da canção, chamada apenas “Minha Bonita”, na qual Erasmo surge resmungando a melodia, que lembra muito “Guantanamera”, a clássica canção de protesto.
“Foi-se” transformou-se em “Dane-se (Dance)”, com melodia feita por Arnaldo Antunes e participação vocal de Russo Passapusso, que funciona bem no ritmo que tangencia o samba e o coco, com uma letra que mostra o Erasmo cronista do cotidiano do trabalhador, faceta que aparecia em canções preciosas como “Cachaça Mecânica”. Essa verve também dá o tom da parceria com Paulo Miklos, “Jaz, Malandro”/”Memória dos Caras Tortas”, com vocais de Chico Chico, mais para Cazuza que para Cássia Eller e um arranjo rock’n´roll que poderia ser um pouco melhor. Este é o caso da boa “Frágil”, crítica metrossexual com parceria e vocais de Teago Oliveira, que soa moderna e urgente. Outro dueto em que Erasmo canta é “Esquisitices”, com Marina Sena, que está um tom abaixo do restante do projeto. A produção é exagerada e o tom da canção soa equivocado em meio ao álbum. Fechando o circuito musical, a impressionante “Nossos Corações”, uma balada mercurial com vocais de Xenia França e um arranjo jovem-guardista com toques soul e eletrônico, que voa alto e ganha vida própria, talvez o melhor momento do álbum.
“Erasmo Esteves” é uma arejada coleção de canções inegavelmente de autoria de Erasmo Carlos, muito bem tratadas por amigos, fãs e colegas, todos movidos pela emoção que elas despertam e pelo tamanho do vazio que um gigante gentil como ele deixa na música, nos nossos corações, nas vidas das pessoas. Um belo, belíssimo presente para fãs e todo mundo.
Ouça primeiro: “Nossos Corações”, “Tijuca Maluca”, “Assim Te Vejo Mais”, “Frágil”, “Minha Bonita Primavera”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.