Mr. Bad Guy – O Disco Solo de Freddie Mercury

 

Todo mundo hoje é fã do Queen, certo? Desde os mais velhuscos – entre os quais, eu estou incluído – passando pelos que amaram “Quanto Mais Idiota Melhor” e sua cena de interpretação de “Bohemian Rapsody” dentro do carro, aos mais novinhos, fascinados por tudo que a memória deixou chegar até aqui sobre a banda. Sim, porque a memória vai sendo construída ao longo do tempo e, dependendo da circunstância e da vontade, pode ser bem seletiva. Em termos de Queen também funciona deste jeito. Só chega a 2019 o melhor possível do quarteto inglês, enquanto os momentos mais humanos, falíveis e questionáveis ficam pelo caminho. Um desses momentos é, justamente, a estreia solo de Freddie Mercury em 1985. Muito se fala da banda, pouco – ou nada – se fala de “Mr. Bad Guy”. Até agora.

Um belo dia de 1985, a Transamérica FM – ou a Cidade FM – colocou “I Was Born To Love You” na programação. Algum locutor deve ter dito, bem à moda daqueles tempos: “e agora, com vocês, estreando na programação, A NOVA DO FREDDIE MERCURY”. A canção, com base tecnopop e harmonias familiares para quem ouvia Queen naquela época, foi um grande sucesso mas fez os fãs da banda torcerem seus narizes. A discussão era sempre a mesma: isso é pop comercial, não é rock. Haja saco. Freddie aproveitava um hiato do Queen, no qual todos estavam meio de saco cheio uns dos outros, e dava vazão a uma vontade antiga, a de fazer algo livre dos outros três. Saiu um disco como tinha de ser: exagerado, eletrônico, dançante, gay, intenso e bom. “I Was Born…” entrou na trilha sonora internacional da novela A Gata Comeu e, sim, “Mr. Bad Guy” é um bom disco, daqueles menores, que não passam no teste do tempo.

As onze faixas orbitam este terreno do choque entre o pop dançante, herdeiro da disco music e o rock de estádio, praia do Queen. Os mais atentos vão lembrar que o grupo vinha numa crescente relação de flerte com timbres e estéticas pop desde 1980, quando “The Game” foi lançado. Isso ficou muito mais evidente em “Hot Space” (1982), o disco maldito, que ninguém gosta, justo por isso. Em “The Works”, de 1984, o Queen já conseguira equilibrar mais a receita, dando luz a dois belos espécimes pop, dentro de suas características: “Radio Ga-Ga” e, principalmente, “I Want To Break Free”. Em ambas a banda incorporava batidas eletrônicas, cultivava uma extravagância cenográfica e estética e mantinha intacta a sua habilidade para criar melodias contagiantes. Ambas fizeram muito sucesso na rádio e varreram a MTV com seus clipes. O Queen era um grupo especialmente à vontade na aurora do videoclipe. Esta incorporação do pop continuaria nos discos seguintes, “A Kind Of Magic” (1986) e “The Miracle” (1988). O último trabalho do grupo com Freddie vivo, “Innuendo” (1991), retoma um pouco do rock então deixado para trás.

Após gravar uma faixa para a trilha sonora para o relançamento de Metropolis, o filme de Fritz Lang, “Love Kills”, Freddie Mercury, então habitante do panteão dos grandes cantores dos anos 1980, começou a fazer seu álbum solo. Era um disco bem pensado, veículo para o cantor e compositor colocar pra fora seu estilo de vida na época, sendo assim, “Mr. Bad Guy” tem questões existenciais sobre sexualidade, drogas e solidão, expondo a vulnerabilidade que muitos admitem que Freddie levava consigo.

Uma audição mais de “Mr.Bad Guy” hoje mostra que o álbum ficou datado como boa parte da produção musical oitentista. Timbres, baterias eletrônicas, arranjos, tudo tem cara de shampoo Wella Seleção. Os pianos grandiosos, tocados pelo próprio Freddie, dividem espaço com sintetizadores de todos os tipos. Os beats eletrônicos soam superficiais hoje em dia, mas tiveram seu charme na época. Uma aura de europop paira sobre canções como “Your Kind Of Lover” e da própria “I Was Born To Love You”. “Living On My On” é quase uma demo de canção dos Pet Shop Boys, com Freddie em seu modo atrevido, peitando o mundo e dizendo que está vivendo por sua conta. Por toda letra estão os “ti-ro-li-ro-lê” operísticos que ele gostava de fazer suas plateias repetirem. Há mensagens anti-AIDS em “My Love Is Dangerous”, que traz um inesperado arranjo tecno-reggae descolado. E tem “Made In Heaven”, que foi faixa-título do disco póstumo do Queen, no qual sobras de estúdio foram retrabalhadas e refeitas pelos queens remanescentes – além dela, “I Was Born To Love You”, que ganhou um questionável arranjo rock farofento. Detalhe: “Made In Heaven” era uma das quatro faixas do inestimável compacto PEPSI ROCK MUSIC, lançado na época, na esteira do Rock In Rio, trazendo também Bruce Springsteen (“Glory Days”), Nina Hagen ) (“Universal Radio”) e Carly Simon (“Tired Of Beign Alone”). Eu tinha.

“Mr. Bad Guy” está fora de catálogo e não consta no Spotify. Foi relançado numa caixa de trabalhos solo de Freddie, que só vai interessar aos fãs hardcore da banda. Definitivamente ele é um item pouco prestigiado na mitologia do cantor, o qual preferem que seja visto apenas como o “integrante gay e talentoso” do Queen. Ainda bem que estamos
aqui para mostrar estes detalhes. Procure as canções no Youtube, vale conhecê-las. Também dá pra baixar em mp3 via Soulseek.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *