Marisa Monte flutua no palco do Jockey Clube
Quando fiz a resenha de “Portas”, último disco de canções inéditas de Marisa Monte, disse que ele era um álbum bonito, mas que poderia ser inesquecível. Este tipo de comentário só existe quando está sob análise a obra de uma artista tão interessante quanto Marisa. Não exigimos tanto de alguém que não pode oferecer sempre mais e, se havia alguma acomodação em seu último trabalho, o mesmo não se pode dizer do show que a turnê Portas levou ao palco montado no Jockey Clube Brasileiro ontem, dia 15 de outubro. Aliás, “palco” é um termo reducionista, pois o que se viu foi uma estrutura climatizada e erguida especialmente para o evento, na qual havia espaço para alimentação, exposição de fotos, lojinha de produtos, espaço para doação de alimentos e um tratamento especial ao público em que a gentileza e a atenção com o próximo se refletia em pequenos detalhes.
Com quatro noites agendadas – e esgotadas – Marisa mostrou que não há competidor artístico em sua geração. Ela influenciou todas as cantoras brasileiras que vieram depois dela, além de ser a que melhor pavimentou uma estrada entre a MPB e o pop brasileiro dos anos 1970/80, e a música de seu próprio tempo, a partir dos anos 1990. Em diferentes álbuns ao longo dos últimos 33 anos – o tempo voa – Marisa apontou novos caminhos, inovou em postura de palco, produção em estúdio, renovou o espectro de músicos que a acompanhavam e se tornou uma artista de nível internacional. O show que ela oferece mostra tudo isso, e mais: revela uma artista que está extremamente à vontade diante do público, desfilando várias canções, quase todas de sua autoria, liderando uma banda estelar e esbanjando graça e elegância em todos os momentos. Além da parte musical, a cenografia do show é impecável, com o uso inteligentíssimo de projeções no palco – que é um grande telão tridimensional – complementando as canções, sempre de um jeito diferente.
Acompanhada de Pupillo (bateria), Pretinho da Serrinha (percussão), Davi Moraes (guitarra), Dadi (baixo), Chico Brown (teclados, guitarra e vocais), além de um ótimo naipe de metais, Marisa passeou por seu repertório com igual leveza, unindo “Beija Eu” com “Ainda Bem”, “Sal” com “Ainda Lembro” e mostrando que, ao longo do tempo, a sua identidade sonora se consolidou e evoluiu de forma graciosa. Ela poderia optar por uma postura conservadora e se limitar a repetir arranjos e economizar nos detalhes musicais, mas o que se ouviu foi o contrário. A banda ousou em mudanças sutis de arranjo, adicionando um tempero reggae sutil a “Velha Infância” (hit dos Tribalistas), um peso black baile soul a “Eu Sei (Na Mira)” ou um ar manguebeat light em “Magamalabares”.
Ao longo do show, no palco, em meio às outras canções, as músicas de “Portas” encontraram talvez a sua melhor razão de existir, algo que o disco não revelou tão bem quanto a apresentação ao vivo. A já mencionada “Sal”, a ótima “Língua dos Animais”, a faixa-título, todas preferidas minhas já no álbum, cresceram muito em meio ao contexto do show, ganhando corpo e sentido mais nítidos. Mas é nos velhos sucessos – e como Marisa tem hits – que o público se esbalda: “Na Estrada”, “A Sua”, “Não Vá Embora” e a abençoada “Maria de Verdade”, todas elas se dobram e se mesclam como pertencentes a uma artista que se tornou uma gigante. O show é tão bem pensado e rico que a gente até perdoa a omissão de colossos como “Segue O Seco” (minha preferida máxima da carreira de Marisa) ,”Amor I Love You”, “Volte Para O Seu Lar” ou “Diariamente”, mas, quando Marisa encerra a apresentação mandando uma cover inédita de “Doce Vampiro”, num palco todo vermelho, é possível ver o carinho dela com o público. Aliás, vale dizer: nunca uma apresentação de músicos foi tão carinhosa quanto a que ela fez para os integrantes de sua banda. Um a um, os músicos foram aplaudidos, abraçados, beijados, em demonstrações genuínas e raras de generosidade total. Além disso, uma saudação a todos os professores do país em pleno Dia do Mestre.
Ao fim do show, Marisa e banda, de costas para o público, aplaudem projeções no telão em que se lê SAÚDE, AMOR PARA TODOS, CULTURA, CIÊNCIA, usando de toda a sutileza e elegância para defender pontos de vista e posturas diante da vida. A turnê Portas é um sucesso total e Marisa Monte merece. Agora só falta mandar uma temporada com preços populares para todos os espectros sociais sejam incluídos nesta verdadeira celebração de brasilidades, carioquices e espontaneidades universais que desfilaram pelas mãos dela e seus músicos. Inesquecível.
Setlist:
Intro
Portas
Quanto Tempo
Maria De Verdade
Vilarejo
A Língua Dos Animais
Infinito Particular
Praia Vermelha
Ainda Bem
Beija Eu
Totalmente Seu
Ainda Lembro
Preciso Me Encontrar
Vento Sardo
A Sua (Marisa Monte)
Déjà Vu
Sal
Calma
Eu Sei
Velha Infância
Feliz, Alegre E Forte
Você Não Liga
Elegante Amanhecer
Lenda Das Sereias
Na Estrada
Não Vá Embora
Magamalabares
Bis
Vide Gal
Doce Vampiro
Pra Melhorar
Já Sei Namorar
Bem Que Se Quis
Foto: Leo Aversa
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.