“Ao seu lado só tinha traficante…”

 

 

 

O primeiro debate do segundo turno das eleições presidenciais inaugurou um novo formato de diálogo entre os candidatos. Transmitido pelo pool de veículos formado por Band, Uol, Tv Cultura e Google, ontem, às 20h, o debate mostrou o que o eleitor já viu em outras oportunidades, mas, às vezes, algumas falas sobressaem, como, por exemplo, a afirmação do atual ocupante da presidência sobre a passagem de Lula pelo Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. “Ao seu lado, só traficante. Foi lá sem ter nenhum policial acompanhando”, disse ele. E Lula respondeu com propriedade, falando que esteve rodeado pelas pessoas do lugar, todas trabalhadoras, que o apoiaram, para, em seguida, arrematar que “não tem medo de entrar num lugar como o Complexo do Alemão sem colete à prova de balas”.

 

 

Este momento do debate me fez pensar na primeira vez que entrei numa comunidade. Foi no Morro da Cachoeirinha, na Zona Norte do Rio, em meados da década de 1990. Eu fazia um estágio na Uerj, num órgão da Sub-Reitoria 3, de assuntos comunitários, chamado Prodeman. Era um pequeno instituto de pesquisas de opinião pública, voltado para demandas sociais e o que nós fazíamos era coletar e processar dados em levantamentos solicitados pelo governo do estado. Lembro de iniciar meu estágio participando de uma pesquisa encomendada pela Prefeitura do Rio, sobre a satisfação dos usuários de escolas municipais. O que elas achavam, o que poderia melhorar, como isso poderia acontecer e tudo que se voltasse para esta questão. Foi uma pesquisa longa, com vários estagiários participando, cobrindo todo o município do Rio. Eu, por exemplo, coletei dados em lugares tão distintos quando Jardim Botânico, na Zona Sul, quanto Cosmos, na Zona Oeste. E, como mencionei acima, na Cachoeirinha.

 

 

Chegamos lá de manhã cedo, numa Kombi da Uerj. Eu fui como uma espécie de supervisor informal do grupo, encarregado de manter o contato com a Associação de Moradores do lugar, que me garantiria o acesso sem qualquer tipo de problema. Lá chegando, contato feito, iniciamos a coleta de dados, que consistia num questionário em que as pessoas responderiam e apontariam os detalhes. Não houve uma só pessoa que não respondesse que confiava na educação e na escola como meio de melhorar a vida do filho/filha que estava matriculado. A maioria esmagadora pensava que o estudo proporcionaria oportunidades para que a vida não fosse tão dura, que houvesse chance de fazer uma faculdade, sair da comunidade, usufruir da vida social de uma outra forma.

 

 

É bom lembrar que, para quem nunca esteve numa comunidade, não há qualquer luxo nelas. Pelo contrário, há habitações de vários tipos, de mais simples a mais elaboradas, mas nunca luxuosas. As pessoas vivem por conta do trabalho, geralmente exercido bem distante de onde moram, o que implica pegar várias conduções para chegar lá. Também é fácil presumir que não há abundância material de qualquer espécie, porém, as pessoas acordam todos os dias, vão para o trabalho enquanto os filhos estão na escola e, quando chega o fim do dia, voltam, com as crianças já em casa. Ou seja, são pessoas como eu e você, que esperam do futuro um meio de solucionar os problemas do presente.

 

 

Claro, durante o percurso na Cachoeirinha, vimos pessoas armadas, possivelmente pertencentes a facções do tráfico de drogas, mas não nos incomodaram em qualquer momento, uma vez que estávamos lá com o aval da Associação de Moradores. No fim da pesquisa, fomos até a escola do lugar e merendamos junto com os alunos, num fim de dia praticamente perfeito.

 

 

É bom que se diga que estes lugares não têm presença do Estado. Não têm a urbanização que a nossa casa, no asfalto, tem. O poder público também não é eficaz em proporcionar lazer ou mesmo as oportunidades para pensar de forma positiva no futuro, o que causa uma série de questões sobre a necessidade de trabalhar antes da hora, de abandonar o lar por conta de problemas de todos os tipos, ou seja, nesta hora, a vida na comunidade é algo bem diferente da vida fora dela. Mas nada disso, nenhuma dessas instâncias, justifica pensar que lá só moram bandidos. Pelo contrário, a maioria estatística é de famílias, crianças, trabalhadores, gente que sofre muito mais do que nós para trabalhar e ascender socialmente.

 

 

O governo Lula, através das cotas raciais e dos programas de crédito e assistência a estudantes, abriu um espaço nunca antes visto para os jovens das comunidades. Na passagem dele pelo Complexo do Alemão, havia vários jovens ostentando as camisas de seus cursos universitários, agradecendo a Lula pela chance de cursar uma faculdade pública. Vi dois jovens e uma senhora, numa janela, com suas camisas “Engenharia – UFRJ” nas mãos, orgulhosos, certos de que, pela primeira vez, algum governante teve o bom senso de dar-lhes alguma oportunidade.

 

 

Eu tive a chance de frequentar duas universidades públicas, uma, no meio dos anos 1990, outra, durante os governos petistas.

 

 

Taxar o povo mais carente de “bandido” é um ato comum para quem encara a desigualdade social como algo que precisa ser varrido para baixo do tapete da hipocrisia. Mexer nessa lógica, subvertê-la e conceder aos mais pobres as instâncias de prazer da sociedade capitalista é uma insolência pela qual Lula jamais será perdoado por quem pensa assim. No entanto, pela mão oposta, ele jamais será esquecido como o governante que desafiou essa lógica.

 

 

Nas comunidades moram seres humanos. Como você e eu. A menos que você não seja humano e aí o problema não é nosso.

 

Em tempo:  Lula se encontrou com lideranças de onze comunidades na visita ao Alemão:  Complexos do Chapadão, da Maré, da Penha, do Alemão, Vila Cruzeiro, Cidade de Deus, Rocinha, Barbante, Dendê, Favela da Linha e Dick.  O Complexo do Alemão recebeu investimentos de mais de R$ 900 milhões em obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) iniciadas em 2008. Hoje, todas as obras e ações sociais foram paralisadas.

 

Em tempo 2: durante sua visita ao Complexo, Lula usou um boné com as letras CPX, que abreviam, justamente, o termo “Complexo”.  Partidários do atual ocupante da presidência disseram se tratar de uma sigla secreta ou algo assim, mas os bonés são confeccionados na própria comunidade. Desde a passagem do ex-presidente por lá, as encomendas do item triplicaram.

 

Em tempo 3: Lula visitou a Voz das Comunidades, organização não-governamental e jornal comunitário criado em 2005. O fundador do Voz das Comunidades, Rene Silva, foi escolhido pela Revista Forbes Brasil como “exemplo de um time que está reiventando um país” e em 2018 ganhou o prêmio em Nova York da organização Mipad (Most Influential People Of African Descente), concedido a pessoas afrodescendentes influentes.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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