As portas entreabertas de Marisa Monte
Marisa Monte – Portas
Gênero: MPB
Duração: 49 min.
Faixas: 16
Produção: Marisa Monte, Arto Lindsay e Marcelo Camelo
Gravadora: Phonomotor/Sony
Uma olhada na ficha técnica de “Portas”, novo álbum de Marisa Monte, impressiona. Co-produção de Arto Lindsay, colaborações com Marcelo Camelo, arranjos de Arthur Verocai, parceria com Chico Brown e as presenças de músicos talentosos e familiares, como Dadi e Pedro Baby. Até uma parceria com Flor, filha de seu jorge, está no terreno. Além da ficha, um conceito sobre trânsito, espera, passagem e potencial curativo da música num tempo como o atual. Marisa é uma mulher inteligente, talentosa e encantadora, disso não há dúvida. Sua carreira solo se ergueu sobre estes pilares e se mantém firme, a tal ponto que ela pode se dar ao luxo de promover grandes intervalos entre seus álbuns – o último foi em 2011, quando lançou o médio “O Que Você Quer Saber de Verdade”. E, claro, há sua participação n’Os Tribalistas, que lançaram seu segundo álbum em 2017. Fora isso, Marisa vai maturando e isso talvez não seja o que de melhor poderia acontecer a ela.
Veja, “Portas” é um belo disco. Seus arranjos e instrumentais são ricos e luxuriantes. Várias cordas, metais, pianos, um bom gosto perene. Seu canto segue firme e doce, sua musicalidade também finca pés numa década de 1970 entre o idealizado e o realizado. Há referências de inconsciente coletivo aqui e ali, mas também há as referências de praxe em sua obra: Roberto Carlos, Jorge Ben, Caetano Veloso, Gal Costa, aquele Brasil perfeito e colorido, envolto naquelas sonoridades fluidas e belas, que chegam prontas com o selo de “isso é esteticamente belo e bom, ouça”. Não é uma visão totalmente errada, mas, por conseguinte, não é uma visão muito precisa. Tal busca trouxe um padrão para Marisa que, ao mesmo tempo em que lhe dá uma marca sonora indelével, acena com uma acomodação que já se insinuava no trabalho anterior. Pra ser sincero, a última canção que Marisa Monte gravou e que realmente soava instigante e bela acima de qualquer suspeita, foi “Vilarejo”, de 2006. A única que parece ter sobrevivido ao teste inclemente do tempo.
“Portas” tem, dentre 16 faixas, cinco candidatas a passar nesse teste. É pouco, não? Poderia ter bem mais, porém o norte que usei para entender este desafio foi, justamente, a presença de uma fagulha, uma centelha de vibração, de desejo de manter-se em movimento. O álbum traz várias, inúmeras passagens belas e de manual, porém, todas meio plásticas e derivativas de outras canções que Marisa vem fazendo desde 2000, quando lançou o bom “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”, seu quarto álbum, que lhe deu este padrão para, a partir dele, criar um universo (particular) seguro para sua verve de compositora e cantora. Vejamos estes momentos de criatividade presentes em “Portas”. O primeiro é a faixa-título (de Marisa, Dadi e Arnaldo Antunes), que tem piano muito presente e uma levada que poderia evocar a beleza das canções de Guilherme Arantes, algo que se encaixa nessa riqueza melódica presente aqui. É um bom cartão de visitas, que recebe o ouvinte e lhe enche de esperança.
“Déjà Vu” (de Marisa e Chico Brown) é outro ponto em que Marisa se permite alguma criatividade com ares de surpresa. A letra é belíssima (“quando eu penso em nós dois, vejo até sem querer, a tua falta no espelho, quando eu penso em você”) e o arranjo tem cordas, percussão e um belo solo de guitarra de Davi Moraes. “Medo do Perigo” (outra parceira com Chico Brown) tem aura de canção setentista de Milton Nascimento ou Beto Guedes e mais uma letra espertíssima (“ninguém nos prepara pro amor que nos separa”, “vivo morto-vivo por você”). “Língua dos Animais” também tem uma beleza misteriosa, outra parceria de Marisa com Dadi e Arnaldo Antunes, é uma canção noturna, que muda completamente seu andamento e abraça uma forma surpreendente de R&B/Blues estilizado, que evoca um misto de Belchior com Roberto Carlos de 1968/69. Funciona e bem. Por fim, “Sal”, que é, provavelmente, a música mais bela do álbum, uma lindeza em espiral, parceria com Marcelo Camelo e que tem arranjo que traz cordas rodopiantes e violão que conduz tudo. Quando não se espera, a percussão chega nos detalhes e tudo fica ainda mais belo.
Ninguém discute a legitimidade de Marisa como uma representante digna desta tradição estética da MPB. Ela mesma se dispõe a ser esta pessoa, abraçando apertado este conjunto de detalhes, mas esta relação, esta simbiose já rendeu frutos mais belos e coloridos, especialmente em “Mais” (1991) e, sobretudo, em “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão” (1994), quando ela ainda teimava em dar contornos mais inovadores a esta mesma mistura. “Portas” é um disco bonito, que poderia ser sensacional.
Ouça primeiro: “Sal”, “Lingua dos Animais”, “Portas”, “Déjà Vu”, “Medo do Perigo”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Preciso ouvir o álbum mais vezes, mas de fato há uma sensação de déjà vu. Concordo que “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão” (1994) é o melhor disco da MM. Aliás, para mim ele é perfeito
Estamos preparando uma lista de 13 canções da Marisa e postaremos em breve. Obrigado pelo comentário.
Em tempo: há três faixas de “Cor de Rosa” na lista.
Muito boa e precisa sua resenha! Compartilho dessa opinião e pinçaria justamente as mesmas canções. Só senti falta de uma ficha técnica mais robusta… mas tudo bem, eu costumo sentir falta disso sempre. Rsrsrs
Abraços!
Gastão Villeroy
Obrigado pelo comentário, meu caro.