Lhe chamar enquanto corria a barca…

 

 

O primeiro disco que comprei de Moraes Moreira foi o obscuro “República da Música”, lançado em 1988. E o comprei errado, porque estava atrás de uma canção que não constava dele, mas do anterior, “Mestiço é Isso”, de dois anos antes. “Sintonia”, a música que havia me encantado, parte integrante da trilha sonora original da novela Hipertensão, era o meu alvo e qual não foi minha decepção ao ver que ela não estava ali, naquele LP novo em folha. Mas, ao contrário de trocá-lo na Copadisco, decidi dar uma chance. Afinal de contas, eu já conhecia e gostava de Moraes Moreira desde “Pombo Correio”, “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” e, principalmente, “Meninas do Brasil”.

 

O disco não era lá essas coisas, mas me chamou a atenção a última faixa do lado B, “Preta Pretinha”. Naquele tempo, eu, com 17 anos, em 1988, ainda não sabia quem eram os Novos Baianos, digamos, “a sério”. Já tinha ouvido “Brasil Pandeiro” mas as músicas do grupo, via de regra, eram privilégio de quem havia vivido aquele tempo. Elas não tocavam no rádio, não apareciam na TV. Não havia gente descolada recitando a letra de “Mistério do Planeta” em programas sobre culinária e decoração. Era um outro mundo, no qual a gente precisava encontrar nossos caminhos próprios para chegar até a informação que, no caso, era a música. E foi este disco fraquinho do Moraes que me levou a mergulhar nos Novos Baianos.

 

Antes disso, claro, eu me encantei pela “Preta, Pretinha” regravada em 1988. Pra uma canção de dezesseis anos, ela parecia até mais clássica e gostar dela era um traço recente da minha personalidade musical de então, imersa em redescobrir os caminhos da música nacional, dos mineiros do Clube da Esquina, passando pelos grandes compositores nordestinos, aos bossanovistas. Talvez fosse a minha primeira grande incursão “temática” no momento pós-rock dos anos 1980 que, todos sabemos, em 1988 já não era o ritmo preponderante. A lambada estava no horizonte. Depois viria o sertanejo e o fim do mundo como o conhecíamos. Moraes (res)surgiu como um dos responsáveis por uma música que eu chamo hoje de visual e “Preta…” é um ótimo exemplo disso.

 

Eu havia lido a resenha de “República da Música” numa edição da Bizz e o texto se referia à canção como sendo um fragmento de discurso vindo de algum alto-falante do interior. Esta imagem grudou na minha mente e logo me vi transportado para alguma cidade do interior da Bahia, mas, paradoxalmente perto do mar, claro. Era um lugar em que as pessoas iam pegar uma barca, para atravessar um rio ou algo assim, talvez o São Franscisco, vá saber. E lá, no meio do movimento da cidadezinha, um casal indo/vindo, que está quase perdendo o transporte. “Eu ia lhe chamar, enquanto corria a barca”.

 

A letra não só é visual, é surreal. Os versos não se encadeiam totalmente, a gente é levado a juntar a história – mesmo que não haja uma história formal – e imaginar uma cena. Na minha cabeça, da época e de agora, Moraes está no centro da cidade, indo até sua amada, chamando-a para que eles não percam a barca. E ela é a “Preta, Pretinha”, uma morena linda como o Brasil que queremos pra nós. Durante todo o percurso da canção, Moraes está correndo em direção à Preta, nada mais passa por sua cabeça. A repetição deste verso – “lhe chamar enquanto corria a barca” – mostra sua obstinação. Logo em seguida, a partir de “abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer”, me parece que é Preta dialogando com Moraes, não querendo ir. Ela é “um pássaro que vive avoando, vive avoando sem nunca mais parar”. Talvez não queira ir com nosso herói.

 

 

Sua assunção no verso final: “ai, ai saudade, não venha me matar” me leva a crer que eles não embarcaram juntos, mas abre espaço para que venham se reencontrar num futuro próximo. O clima, o arranjo, o tom de voz de Moraes e dos instrumentos não é triste, pelo contrário. Ele precisava pegar a barca, mas imagino que volte logo para os braços de Preta.

 

Talvez hoje, dia 13 de abril de 2020, ele finalmente tenha regressado para esta minha cidadezinha baiana imaginária, com uma barca que vem e vai pelo rio, chegando para os braços de sua amada, que ainda está lá, do jeito que ele a deixou, a esperá-lo. Ouvir “Preta Pretinha” hoje, dia da morte de Moraes, só é suportável se esta minha história maluca, criada há 32 anos, finalmente faça sentido. Mesmo que seja em outro plano.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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