Judas – Os Desencantos: Dez Cantos Desencantados

 

Gênero: MPB, folk alternativo

Duração: 47 min
Faixas: 10
Produção: Adalberto Rabelo Filho
Gravadora: Aardvark/Tratore

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

As coisas não vão bem, certo? Existem várias formas de notar isso, seja vendo o noticiário, sabendo por alguém da família que outro alguém da família apoia coisas abjetas que o presidente defende. Às vezes basta olhar da janela e ver algo triste acontecendo na rua, bem debaixo nos nossos narizes. E, noutras, basta ouvir uma canção, um disco, ver um filme. “Os Desencantos”, segundo álbum da banda brasiliense Judas, é um destes artefatos que fazem o ouvinte se dar conta de que estamos num momento peculiar da história, marcado por um monte de exacerbações negativas. Ao mesmo tempo que conscientiza, o álbum toma pra si a licença de fazer poesia e música da tragédia cotidiana, seja no plano público, seja no plano privado. O que se ouve é um documento contundente da realidade brasileira, quiçá mundial. E para trazer isso até o ouvinte, o Judas mergulha numa estética sonora que tem tradição e novidade, estrangeiro e brasileiro coexistindo nas dez faixas que apresenta.

 

 

Na verdade, “Os Desencantos” traz uma faixa inédita – “Cisne Negro” – e compila outras nove canções que o grupo tem lançado em formato de EP desde 2016. Nos vocais, produção e comando tático motorizado, está Adalberto Rabelo Filho, que já assinou trabalhos e compôs para gente tão diversa quanto Wado, Maria Alcina, Autoramas e Jards Macalé. Ele também é o letrista do grupo Vespas Mandarinas. A ideia do Judas é revestir seu discurso cotidiano com sonoridades que mergulham na música brasileira mais tradicional, especialmente a canção violeira mais enraizada, revestindo-a de tonalidades roqueiras, guitarreiras e, a partir daí, inserindo discursos que poderiam caber em pregações apocalípticas na praça pública, entoados por aqueles sujeitos com os dizeres “o fim está próximo” no cartaz empunhado diante do trânsito. E, ora, como negar que ele está, de fato, próximo ou que, talvez, já tenha até passado? As faixas ajudam a refletir sem que, no entanto, estejamos diante de um álbum depressivo. Judas não te trai.

 

“Casa de Tolerância 1” é o ponto de partida do percurso musical e logo nos sentimos no meio de um grande Brasil imemorial. A narrativa é agreste, seca, no chão vermelho de sangue e terra, e fala sobre a nossa tradição atemporal de privilegiar poucos e maus, que se perpetuam. A partir daí, Adalberto mais Carlos Beleza (guitarra), Hélio Miranda (bateria), Bruno Prieto (baixo) e Pedro Vaz (viola caipira), se embrenham num êxodo rural, movimento pendular, que visita cidade e campo, memória e inconsciente, tudo ao mesmo tempo, usando paisagens familiares para ilustrar as falas desesperadas, como este verso em “Oroboro”, “não existe nada mais bonito neste mundo do que morrer e renascer pelo amor”, que apontam para uma redenção em meio ao caos, ainda que tal via de expiação seja muito difícil de ser trilhada. Tem um quase afoxé rural em “Cada Cidade Um Porto”, em que o ritmo, as violas caipiras e os vocais erguem uma paisagem meio Alceu Valença, modernizado e tem participação de Maria Sabina nos vocais, num belo contraponto.

 

Outras canções surgem evocando alguns mestres do passado. Há algo de Raul Seixas em “Os Novos Malditos”, uma verve mais percussiva e roqueira em “Matadouro nº5”, cujo título do livro de Kurt Vonnegut ressurge para nomear um rock que poderia ser do mundo livre s/a em algum ponto dos anos 2000. E “Enfermaria nº6” se vale de várias referências rítmicas ao longo de seu percurso, inclusive lembrar de uma velha canção da Legião Urbana, ao reescrever o verso “enquanto isso, na enfermaria, todos os doentes estão culpando as paradas de sucesso”. Há um quê de Zé Ramalho na introdução e fio condutor de “Rio das Almas”, com um clima mais folk rock do que as canções anteriores, e na levada de “Um Moi de Vento”, com paisagens oníricas que vão sendo engolfadas pela realidade dura. Há uma homenagem literal ao eterno poeta canadense Leonard Cohen, em “Ambissinistra”, que antecede a inédita “Cisne Negro”, que pega emprestado ritmos dançantes do norte do país e os mistura com abordagem mais roqueira, cheia de guitarras bem tocadas.

 

“Os Desencantos” é um disco que te chama às falas e oferece um ponto de vista bem verdadeiro sobre os tempos. Ele é rico musicalmente, bem tocado e bem produzido. Deve ser conhecido pelo maior número de pessoas possível.

 

Ouça primeiro: “Enfermaria nº6”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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