João não toca mais violão
Embora tenha sido definida como mãe gentil por seu hino, a pátria brasileira tem longuíssima história de calamidades. Certo, este não é apanágio exclusivo da nossa nação, pois a história humana em todo o planeta é pontuada por desgraceiras de todos os tipos, mas na década em curso os desastres brasileiros agigantaram-se e têm sucedido uns aos outros de modo frenético. Mal temos tempo de entender um fato que representa o mal em grande escala e outro logo toma o lugar dele sem a mínima consideração pela nossa saúde mental. Os últimos cinco anos foram particularmente pródigos em más notícias. Todas as formas de tragédias têm se abatido sobre nossas cabeças como tempestade diluviana: políticas, econômicas, naturais, sociais, culturais, fiquem à vontade para escolher as mais perturbadoras. Perdida no furacão de fatalidades que cotidianamente nos sacode e nos desmonta temos uma que, para muitos, pode parecer pequena quando comparada às mais espalhafatosas, mas que se afigura como fonte de sofrimento permanente para o Brasil (e, por extensão, para o mundo): João não toca mais violão.
Que João, vocês perguntam? João Gilberto. Aos 87 anos, com a saúde debilitada pela idade avançada, João vive seu declínio. O violão que ele tanto abraçou e cujas cordas dedilhou com tanto empenho está mudo. Ok, o músico deve ter possuído vários violões ao longo das décadas, mas os violões de João (con)fundem-se, tornam-se um só instrumento. O violão primordial. Violão-avatar.
Aos admiradores de João e do melhor do espírito brasileiro, a ideia de que o músico permanecia depurando obsessivamente sua arte, mesmo longe dos olhos e ouvidos dos outros, sozinho em seu apartamento, vestindo pijamas, era reconfortante. Direi o porquê disso. A despeito do caráter opressor da generalização, este é um recurso mental que permite que façamos nossos próprios mapas-múndi e estabeleçamos nele nossas próprias coordenadas com a precisão que supomos adequada aos nossos valores e interesses. Uma generalização comum e que infelizmente costuma receber confirmação do plano dos fatos com regularidade espantosa é a que propala que o brasileiro prefere buscar o caminho mais fácil para atingir o êxito pessoal ou coletivo, ainda que tal caminho implique na desconsideração das leis e das mínimas regras da urbanidade. A celebrada inventividade do nosso povo nasce do “jeitinho” assim como nossa incivilidade. As exceções a esta generalização existem; é injusto pensar que não existe um indivíduo lá fora que não procure resguardar uma porção de retidão da alma, embora saibamos por experiência que, por força das circunstâncias, quase todos nós temos que nos ajoelhar diante das instituições nacionais mais duradouras, entre elas o “jeitinho”, para sobreviver.
Comprometido totalmente com o rigor da arte brasileira, com a excelência de suas performances (exigida por ele mesmo antes de todos), João, acompanhado de seu violão-avatar, é/era o avatar do Brasil que evita atalhos e escolhe o caminho árduo para percorrer durante a vida. Muita coisa em João Gilberto sugere esforço no grau máximo. Reparem na figura de João quando ele se apresentava ao vivo: o esforço se manifesta no rosto por vezes crispado e em alguns movimentos mais tensos do corpo do artista. João parece muitas vezes buscar a voz lá no fundo do fundo do fundo de si mesmo, gesto paradoxal que exige o máximo de esforço para produzir o canto mais suave e fluído. A arte de João é rigorosa, mas não é ascética porque dança ao ritmo de um Brasil ideal, Brasil-avatar que ela mesma representa como poucas expressões são capazes de fazer (não me ocorre nenhuma neste momento, para ser sincero). O rigor estético de João é rigor à brasileira, mas sem “jeitinho”. É rigor amoroso que balança a baiana-avatar. João é um exegeta tão bom que nos faz acreditar que o resultado de todo o seu esforço é a música do Brasil em seu aspecto mais nuclear, mais básico. Música-avatar.
João Gilberto é figura divisiva. Passou grande parte da vida isolado, fisicamente distante das pessoas. O rigor imposto a si mesmo como artista é imposto por ele ao mundo. Como Glenn Gould, João fez o possível para proteger sua música dos ruídos do mundo. Para o Brasil do jeitinho, afeito às soluções fáceis e que não exigem muito trabalho, o rigor de João é só chatice. Talvez o jeito de ser de João (ou “jeito de corpo”, como diria Caetano) seja resultado de uma condição mental específica e incomum que faz com que o homem seja incapaz de lidar com as coisas banais do mundo enquanto faz dele um artista-avatar. Mais do que leitura moderna da música popular urbana, a arte de João Gilberto é símbolo do Brasil que ainda não é, mas pode ser a mãe gentil de que tanto necessitamos.
Infelizmente, João não toca mais violão. O combate quixotesco empreendido por João (munido de lança em forma de violão) contra alguns dos mais perniciosos hábitos brasileiros é coisa do passado, está circunscrito às gravações em áudio e vídeo. O exemplo fica, é claro, mas a noção alentadora de que João continuava refazendo seu xodó com muito amor às escondidas se foi. O silêncio do violão de João é o silêncio da civilidade em um país cada vez mais carente dela.
Nota do Editor: eu gostaria de ter escrito este texto.
Zeca Azevedo é. Por enquanto.
Muito bom o seu texto,concordo com o seu jeito de tratar o tema de João e o seu violão.Levei muito tempo até entender a ligação dele com o instrumento de trabalho,um dom que exigi completamente conhecimento para mostrar o resultado perfeito a sua obra e mostrar aos outros que pagam para ouvi-lo.Esse é um artista nosso e precisa de respeito,poucos ainda restam . O jeitinho brasileiro pode ser usado com cuidado e nossas preocupações diárias não permitem que sentamos e escutamos uma música clássica,uma m.p.b. de qualidade e o João e o seu violão.Chato isso!Legal Zeca!
O autor se revela tão esteta quanto o objeto do texto. Um primor. Parabéns.
Exato.