Kim Gordon injeta vida e urgência no rock

 

 

 

 

 

Kim Gordon – The Collective
41′, 11 faixas
(Matador)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Não há pessoa melhor do que a própria Kim Gordon para descrever inicialmente o que pretende com seu segundo – e impressionante – álbum, “The Collective”: “Neste disco, eu queria expressar a loucura absoluta que sinto ao meu redor agora. Este é um momento em que ninguém sabe realmente o que é a verdade, em que os fatos não influenciam necessariamente as pessoas, em que cada um tem o seu lado, criando um sentimento geral de paranóia. Para acalmar, para sonhar, fugir das drogas, dos programas de TV, das compras, da internet, tudo é fácil, tranquilo, cômodo, de marca. Isso me deu vontade de romper, de seguir algo desconhecido, talvez até de falhar.”.

 

Tá bom pra você?

 

O que temos em “The Collective” é uma dessas sínteses perfeitas de um determinado momento/sensação. Posto que o tempo passou a correr cada vez mais rápido, conseguir captura-lo com precisão é cada vez mais complexo, talvez impossível. Sendo Kim uma das mais importantes artistas da música popular em todos os tempos – sem exageros – não é espanto ver o quão precisa ela é nesta tarefa de, digamos, documentar o caos e a desorientação que marcam o nosso momento existencial e social. Se ela já faz isso desde sempre, especialmente quando participava do Sonic Youth, uma das últimas bandas a acrescentar novidade genuína ao rock, repito, não é surpresa ver que ela se mantém atenta e certamente mais aguda do que antes.

 

O formato sonoro das canções presentes em “The Collective” é um híbrido de batidas de trap e hip hop com instrumental de guitarras, teclados e ruídos, tudo voltado para obter uma sensação que equivale à do rock mais abrasivo possível. É rock sujo, experimental, que corre riscos, que documenta a cidade, o quarto, as quatro paredes ruindo sobre elas mesmas, ou seja, sensações que não são confortáveis e fofinhas. Kim não está exagerando quando fala em paranoia ou em loucura absoluta cercando as pessoas diariamente. No caso dela, deve ser ainda mais angustiante ao ver, por exemplo, donald trump vencendo primárias e configurando-se como postulante à presidência dos Estados Unidos, mesmo envolto em escândalos, má gestão e incentivo a rupturas democráticas. Se este problema existe, digamos, no plano macro, o que perpassa para o plano pessoal é consequência direta. Some a isso o aquecimento global, a perda de fé no futuro, os mandos e desmandos neoliberais e o derretimento dos conceitos de “verdade” e “razão” e a gente tem um painel caótico e terrível. “The Collective” é isso, um documentário sobre esse cenário.

 

Quem ficou tanto tempo no Sonic Youth não teria motivos para temer qualquer tipo de revolução sonora. As canções do álbum exalam urgência e modernidade. Estão décadas à frente de todo e qualquer tradicionalista/purista do rock. Tudo é próximo da perfeição, com guitarras agonizando por toda parte, batidas marciais – e leves – de trap e hip hop, mais ou menos como uma cidade que vai desmoronando diante dos próprios olhos e ouvidos. Destaques? A maravilhosa lista de viagem logo na faixa de abertura, “BYE BYE”, o ritmo sussurrante de “The Candy House”, a batida seca de “Shelf Warmer”, a porrada em “I’m a Man”,  o caleidoscópio enlouquecido de “Dream Dollar”, o industrial agonizante de “The Believers”, tudo é necessário e sintonizado com o propósito do álbum. Palmas também para a produção de Justin Raisen, que já pilotou o estúdio para gente como Lil Yachty, John Cale, Yeah Yeah Yeahs e Charli XCX, além de Anthony Paul Lopez, responsável pelo toque ligeiramente dub que algumas canções ostentam.

 

Dizer que “The Collective” é uma “trilha sonora dos nossos tempos” é um clichezão da crítica jornalística musical, mas, sinceramente, ele é bem preciso para descrever a sensação de incômodo-fascínio-hipnose que essas canções exalam. E, sendo elas compostas e interpretadas por Kim Gordon, uma nova e fortíssima camada de significado cai sobre elas. Ouçam e constatem.

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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