Free As A Bird
No fim de 1995 foi lançado o primeiro volume da série “Anthology”, que mapeava e apresentava – pela primeira vez – várias gravações alternativas, takes, sobras de estúdio, feitas pelos Beatles ao longo de sua carreira. O material chegou badaladíssimo às lojas naquele fim de ano e antecedeu a exibição de uma série televisiva sobre o assunto. Depois seria lançado em VHS, DVD, livro e em três CDs duplos. A Anthology foi o primeiro lançamento que visava ampliar o catálogo dos quatro rapazes de Liverpool. Antes dela, apenas as duas coletâneas de singles, “Past Masters” e os mitológicos álbuns vermelho e azul, lançados ainda nos anos 1970, compilando os sucessos do grupo.
O que dava o grande, imenso, insuperável charme à chegada de Anthology era a presença de duas gravações inéditas dos Beatles, feitas a partir de fitas-demo de John Lennon, cedidas por Yoko Ono para que os três rapazes remanescentes as finalizassem. Sendo assim, George Harrison, Ringo Starr e Paul McCartney se debruçaram sobre “Real Love” e “Free As A Bird”. A primeira seria lançada no segundo volume de Anthology e surgiu muito próxima do registro demo de John, até porque já era uma canção formatada. Em “Free As A Bird” o negócio foi totalmente diferente. A melodia que John deixara era apenas um fiapo e o trabalho dos três Beatles e do produtor, Jeff Lynne, foi impressionante.
Quando ouvi a canção pela primeira vez, não consegui conter as lágrimas. Tudo bem, era emocionante mesmo, até pra quem não era fã dos Beatles. Afinal, o que Lynne e os Beatles fizeram em estúdio foi mágico. A canção saiu com uma aura triste e pungente, que poderia credenciá-la para fazer parte do derradeiro álbum da banda – e meu preferido – “Abbey Road”. É uma canção poente, ainda que tenha uma mensagem de esperança e liberdade, mas que é meio que subvertida pela consciência de que Lennon não estava mais entre nós. Ao mesmo tempo, de forma paradoxal, o uso de sua voz, gravada na demo, o torna inegavelmente presente no estúdio e isso confundiu os ouvidos e mentes das pessoas. A sensação foi de um pasmo de beleza até hoje preservado quando a ouço.
Mas o arranjo feito em estúdio é que me assombra. Todas as marcas inegáveis e registradas dos Beatles estão aqui. A guitarra de George e seu timbre característico. A bateria precisa, marcial, Ringo. Os vocais de apoio entrelaçados e a melodia complementar ao original de John, formatada por Paul, fazendo de “Free As A Bird” o resultado de dois originais, fundidos em um, do mesmo jeito que “A Day In The Life”, obra-prima de “Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.
Pra completar o estrago, foi lançado um clipe enciclopédico e lírico, mostrando a história dos Beatles em forma de imagens de arquivo, transformadas em narrativa de desenho animado, efeitos e tudo mais, de um jeito que, durante muito tempo em minha vida, me foi impossível ver sem chorar de beleza.
E hoje, ontem, por esses dias, essa canção, em que alguém está livre como um pássaro, após a correção de uma enorme injustiça, trouxe uma nova camada de sentido para ela.
Mesmo sendo lançada 25 anos depois do fim da banda, “Free As A Bird” é uma das minhas dez gravações preferidas dos Beatles, um exemplo de uma mágica que não se vai.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Putz, a minha experiência com essa música está toda aí, integralmente descrita em seu texto. Só de lê-lo, a emoção daquela época aflorou. E viva o pássaro livre que entoa a esperança!
Abbey Roda é o meu preferido também! Célula Pop cada dia mais leitura obrigatória.