Caetano, um nativo em “Estrangeiro”.
Seja na bossa matutina de Domingo (1967), seja na originalidade e contundência de Meu Côco (2021), tem um Caetano para cada gosto. Dono de uma das discografias mais instigantes da música popular brasileira, o prolífico músico embarca nas mais variadas concepções estéticas para entregar um trabalho original a cada disco. De tanta naturalidade, Caetano se torna nativo até mesmo no Estrangeiro, disco de 1989.
Não bastasse o curioso título – para compreender melhor a relação do autor com a obra citada basta buscar o relato comovente sobre sua prisão em Verdade Tropical (1997, Companhia da Letras) – que é fruto do período em que tomou contato com sua obra homônima e sua agonia frente ao absurdo da existência, o álbum ainda conta com um time de músicos de outro planeta. Para ficarmos com alguns destaques, temos Naná Vasconcelos e Carlinhos Brown nas percussões, além da assinatura de Arto Lindsay, pioneiro da cena No Wave e fundador da banda Ambitious Lovers, e seu companheiro de empreitada, Peter Scherer. Imerso em uma espécie de Talking Heads tropical, o disco se desenvolve sob uma atmosfera experimental costurada por um pop sagaz e elegante, marcando um dos tantos encontros do tropicalismo fora de época com os banquetes antropofágicos das culturas vigentes em cada época que o artista atravessou.
Já no início, Caetano coloca seus versos a serviço da linda estranheza do inesperado, com um refrão que compara a cegueira do amor à cegueira de artistas que não enxergam bem para mostrar que a beleza não é necessariamente aquilo que é vista. A letra ainda coloca a Baía de Guanabara sob perspectivas distintas, numa profunda relação filosófica com a estética e com o belo, começando com a afirmação da beleza com “O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara/O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela/A Baía de Guanabara/’ e a antítese “O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara/ Pareceu-lhe uma boca banguela”. Na sequência, o autor se dá conta que nem ele mesmo sabe o que pensar, uma vez que fora anestesiado pela corriqueira paisagem: “E eu, menos a conhecera, mais a amara?/ Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela/ O que é uma coisa bela?”. Com esses versos de absoluta grandeza filosófica, o disco se agiganta e prepara a próxima faixa. Rai das Cores é uma balada torta que relaciona as cores ao mundo e aponta para um fato perene: as cores são parte de um todo cotidiano que ora é ignorado, ora é catalogada em forma de poesia, universalizando ainda mais o conceito da faixa anterior.
Em Branquinha, Caetano retoma os tempos solares de sua obra. Uma estrutura perfeita, com rimas complexas e profundas, mas que poderia muito bem integrar os discos mais pops e deliciosos que produziu no fim da década de 70. Aliás, cabe mencionar a capacidade do músico de ser pop quando vanguarda e vanguarda quando pop. Um dos pontos altos do disco fica a cargo da música Os Outros Românticos que, com um assombroso e inclassificável arranjo, traz algumas questões complexas em versos que falam dos românticos que cultuavam a idade média situada no futuro. “Jasper” se apresenta como uma lindíssima música cantada em inglês, mostrando um Caetano sincronizado com seus produtores. “Este Amor” é daquelas canções singelas e deliciosas, com uma levada pop caetaneado e uma letra longa e complexa, mas que fica na cabeça.
De João Cabral de Melo Neto até João Donato, o autor mostra suas influências nos supostos e maravilhosos antagonismos da poesia e da música empunhada de forma feroz nos discursos de ambos os citados – um pouco mais por João Cabral de Melo Neto, claro! – em Outro Retrato. A linda Etc é a típica canção de “um cantinho e um violão” em que Caetano abraça nossos ouvidos com o esmero de seus acordes dissonantes. Meia-Lua Inteira é, talvez, o grande hit do disco, com refrão potente e grudento que é impossível não cantar junto. Para finalizar o disco, a linda balada Genipapo Absoluto acalenta os corações com a sua singeleza invejável.
No fim dos anos 80, uma década recheada de novidades tecnológicas e, para Caetano, de incursões maravilhosas na música pop, O Estrangeiro funciona como o ato inaugural de uma faceta ainda mais experimental do autor. Obviamente, suas incursões pela música de vanguarda nos anos 70 com Araçá Azul (1972) e os maravilhosos Jóia (1975) e Qualquer Coisa (1975) renderam um período memorável para o artista, porém, seu léxico musical é atravessado por esses aspectos do Estrangeiro em diante. Seu sucessor, Circulandô (1991) é outro petardo dentro da obra. Ainda sob a tutela de Arto Lindsay, o disco se desenrola de forma genial e ainda mais constante que o primeiro. Com o passar do tempo, Veloso tem se renovado, mas nunca abandonou o vigor experimental dessas obras. O Estrangeiro é um disco que divide opiniões e que, muitas vezes, acaba sendo menos falado que os demais. Entretanto, sendo parte dessa discografia tão volumosa e instigante, é mais um daqueles trabalhos que é impossível passar por ele incólume. Para finalizar: ouça o Estrangeiro e sinta-se em casa!
Alexandre Gallego é Publicitário de formação e pós-graduando em Filosofia Política, Ética e Contemporaneidade. Paulista por acidente, mas brasileiro por amor. Ama as notas dissonantes nos acordes de um saudoso João e a filosofia de asfalto de um tal Dylan. Um jovem nessa década que busca em outras as respostas para o agora.