Eu, Prefab Sprout e Steve McQueen

 

 

 

Talvez as pessoas nascidas no século 21 achem estranho, mas há bem pouco tempo a gente passava anos sem saber o nome de uma canção que gostava. Ouvíamos no rádio, prestávamos atenção no locutor para tentar pegar o título e correr até a loja de discos mais próxima. Hoje basta ter um aplicativo no celular – Shazam – ou pescar um trecho da letra, colocar no Google e chegar, não só ao nome da canção, mas ao clipe, a várias versões, a sites que esmiúçam seu significado. Pois eu lhes asseguro, sem medo de ser repetitivo: nem sempre foi assim. Aconteceu comigo: em algum ponto dos anos 1980, mais precisamente, em sua segunda metade, alguém programou “When Love Breaks Down” na rádio. A canção era exuberante em sua forma e conteúdo e eu sintonizei a estação já no fim da faixa. Me encantei, não entendi a letra – eu devia ter uns 15, 16 anos – e, pra completar, o locutor não a desanunciou. Tinha início ali um mistério que duraria anos para acabar, mas que me daria o meu disco preferido dos anos 1980: “Steve McQueen”, o segundo álbum dos ingleses Prefab Sprout.

 

 

Eu não lembro de como cheguei ao título da canção (deve ter sido pela MTV, pelo menos quatro anos depois de ouvir a música pela primeira vez no rádio), mas, a partir disso, tinha início uma nova via crucis, a de achar um exemplar do álbum. Percorri várias filiais da Gabriela, busquei na Modern Sound, na Gramophone, na Billboard e … nada. “Steve McQueen” foi lançado em 1985 e chegou aqui pouco depois, numa fornada de álbuns “modernos” que a CBS colocava no mercado, a partir da prevalência do rock sobre os outros gêneros musicais naquele tempo. A edição não teve muitos exemplares e logo saiu de catálogo. Também havia um detalhe: “Steve McQueen” foi o título do álbum fora dos Estados Unidos, uma vez que os herdeiros do famoso ator americano não autorizaram o uso do nome. Sendo assim, houve uma versão com o título de “Two Wheels Good”, que, no entanto, trazia a mesma capa: os Sprouts ostentando uma bela moto Triumph, preferida de McQueen, e usada por ele nas filmagens do clássico “Fugindo do Inferno”, longa metragem de guerra, no qual o ator fez todas as cenas de dublê com uma moto da mesma marca.

 

Lá por 1990, adquiri o meu primeiro disco do Prefab Sprout: “Jordan, The Comeback”, lançado dois anos antes. Lembro bem que foi na Gabriela que ficava na Praça Saens Peña, na Tijuca. Era um jeito de “ficar perto” da banda enquanto não conseguia comprar um exemplar do “Two Wheels/Steve McQueen”. Percorri sebos e nada. Lembrem-se: era um tempo sem cartões de crédito internacionais, sem site da Amazon ou qualquer outro meio de aquisição de um álbum importado. O jeito era esperar e torcer para que alguma rádio tocasse a música. Só fui colocar as mãos numa coletânea do Prefab Sprout já em 1992, quando adentrei a Modern Sound e vi um exemplar em CD importado de “A Life Of Surprises: The Best Of Prefab Sprout”. Não hesitei em gastar uma grana além da conta, mas levei pra casa um verdadeiro tesouro. Ouvi “When Love Breaks Down” até cansar as paredes do meu velho quarto, decorei a letra, todos os detalhes da música, fiz air drums, air keyboard, air qualquer coisa. Já era outro tempo e os discos importados começaram a chegar em lojas como a própria Modern Sound, de Copacabana, e a Sub-Som, na Tijuca. E foi nesta última que eu encontrei um vinil usado de “Two Wheels Good”. Comprei e fui levitando pra casa.

 

Com o passar do tempo, cheguei a ter três exemplares de “Two Wheels Good/Steve McQueen” em casa. Um importado, com prensagem da época do lançamento, uma versão inglesa com versões levemente alteradas das canções, uma outra cópia nacional e, por fim, a Legacy Edition do álbum, lançada em 2007, que tem as versões remasterizadas e um disco extra no qual o vocalista e cérebro da banda, Paddy McAloon, reinterpreta algumas faixas originais em modo acústico. Afirmo a vocês: é o meu disco preferido dos anos 1980 e um refúgio seguro para o qual volto com certa frequência, não porque evoque nostalgia. Se há algo que não se aplica a este disco é a influência do tempo. Ele não fica datado, pelo contrário, fica cada vez mais atemporal à medida que eu o revisito. É como se algum lugar do cérebro-coração dissesse que sempre haverá tempo para a beleza incontestável das canções que o integram.

 

 

“Two Wheels Good/Steve McQueen” foi lançado num tempo em que os Smiths e o U2 brigavam pelo título de banda mais importante do planeta. Em outra raia de disputa, Madonna, Phil Collins e Michael Jackson viviam no plano das superestrelas planetárias. O lance de McAloon e seu Prefab Sprout era outro. Eles sabiam que sua verve como compositores e artistas não daria conta de cativar uma multidão mundial. Os arranjos, as letras, a própria noção da banda estava num âmbito que exigia um pouco mais do ouvinte. As canções nunca desaguavam em ritmos dançantes, tampouco eram feitas para se ouvir a dois. Eram relatos pessoais em primeira pessoa, logo, exigiam certa dose de sentimento à flor da pele para fazer total sentido. Para alguém entrando na sua década dos 20 anos, era tudo o que se podia esperar. Como se não bastasse a carga lírica das composições, McAloon havia recrutado Thomas Dolby para a produção de “Two Wheels/Steve”, o que resultou num álbum aveludado, elegante, cheio de nuances inauditas de guitarra, baixo e bateria, sem falar nos teclados elegantíssimos, pilotados pelo próprio Dolby.

 

 

Havia a tal onda da New Bossa no início dos anos 1980. Algumas pessoas inserem o Prefab Sprout nessa galera – Style Council, Matt Bianco, Everything But The Girl – mas eu acho um equívoco. Assim como o seu parente sonoro mais próximo, o Aztec Camera, o Prefab está num nicho que tem o nome de “sophistipop”, justo pelo cuidado nos arranjos e pela habilidade dos participantes. O fato é que o antigo lado A de “Steve McQueen” é absolutamente perfeito. Apesar do lado B ter pérolas como “Moving The River” ou “Horsing Around”, sem falar em “Desire As”, o tesouro está nas primeiras cinco faixas.

 

 

A abertura vem com “Faron Young”, que tem um ritmo acelerado, algo que eu chamaria de “country aveludado”, com letra surreal de McAloon sobre ouvir Faron Young – um cantor country americano de sucesso nos anos 1950 – às quatro da manhã. No entanto, bastava uma olhada na primeira estrofe da letra para constatar que estávamos diante de algo diferente: “Every other sentiments an antique as obsolete as warships in the baltic”, ou seja, “todo sentimento é uma antiguidade, obsoleto como navios de guerra no Mar Báltico”. Como assim? O que era isso? Quem era esse cara? O que nos leva direto à segunda faixa, “Bonny”. É um dos arranjos mais lindos de todos os tempos, só perdendo para coisas dos Beach Boys, de Burt Bacharach e da Motown, além de outras canções do próprio Prefab. O andamento é mais contido, mais polido que “Faron Young”, com Paddy falando de amor de forma um tanto mais “simples”, com angústia por alguém que se foi, cujo motivo não fica claro, mas que envolve vigílias em vão, vaidade abandonada, toda uma operação sentimental cujo resultado fica obscuro.

 

 

Gosto de pensar que “Appetite”, a canção seguinte, é uma espécie de sequência de “Bonny”, mas é coisa da minha cabeça. As duas são meio parecidas no arranjo, com esta sendo mais “funky”, com uma linha de baixo/bateria de fazer arrepiar até hoje. A letra parece falar sobre os motivos que nos levam a fazer algo, chamando-os a todos de “apetite”, algo que pode ser traduzido como “impulso”, “vontade”, “desejo”, que não fariam feio na métrica mcalooniana. Novamente ele tem a manha para fazer versos que parecem saídos da pena de um Cole Porter oitentista: “so if you take, then put back good. If you steal, be Robin Hood. If your eyes are wanting all you see; Then I think I’ll name you after me. I think I’ll call you appetite”.

 

 

Minha preferida do álbum e uma das minhas cinco canções favoritas de todos os tempos, chega em seguida. “When Love Breaks Down” é uma das mais dilacerantes músicas sobre o fim do amor e fala disso não só em versos como “absense makes the heart loose weight” ou “have you seen the weather, the sweet september rain? Rain on me, like no other, until I’m drown”. Todo o seu instrumental fala sobre isso de uma forma inequívoca e inevitavelmente bela. O trabalho de vocais de apoio – a cargo de Wendy Smith – é belíssimo. A forma como Thomas Dolby achou a progressão de acordes no teclado é magistral. Os vocais de McAloon chegam no máximo de força, algo que não é palpável por altura, mas por intensidade e o fim da canção, em fade out, soava para mim como se fosse a própria vida indo embora sem que nós a perdêssemos. Era quase documentar a perda da inocência em som, algo muito importante e impossível. Acontece entre o minuto 3:13 e o fim da gravação (na versão remasterizada, acontece a partir do minuto 3:25).

 

 

Encerrando este primeiro feixe do disco, uma beleza ingênua sob o nome de “Goodbye Lucille #1”. Novamente o trabalho de Wendy Smith é imprescindível e o arranjo é decisivo, usando com maestria a alterância de climas intensos e suaves, novamente com versos desconcertantes como “life’s not complete til your heart miss a beat”, uma verdade que as pessoas geralmente demoram décadas para descobrir, mas que Paddy oferecia gentilmente para quem o ouvisse com um pouco mais de atenção. Aliás, o ponto de vista do narrador da letra é o de um conselheiro para um certo Johnny, o personagem da canção, que está perdendo a chance de conquistar Lucille. Ou algo assim. McAloon nunca foi completamente claro em suas histórias, mas oferecia verdades inescapáveis no meio das letras, como se fossem frases num exemplar de “Gotas de Sabedoria”.

 

 

Desde que cheguei a estas conclusões, não consigo mais deixar de morar no primeiro lado do álbum. Porque, sim, há discos que nos abrigam e nos levam consigo, mas a gente gosta de pensar que é o contrário, que nós os levamos em nossas vidas. De alguma forma misteriosa, ficamos contidos nas músicas, nas letras, na época em que ouvimos pela primeira vez. De alguma forma, minha expressão de fascínio de 1986 está presa para sempre aqui. Em “Two Wheels Good/Steve McQueen”.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Eu, Prefab Sprout e Steve McQueen

  • 23 de janeiro de 2020 em 15:44
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    Também sou fanzaço do Prefab, muitos amigos até hoje não entendem acham chato e datado, considero esse álbum uma joia dos anos 80 totalmente subestimada.

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    • 23 de janeiro de 2020 em 16:17
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      Rapaz, precisa dar uma doutrinada no gosto desses amigos aí …

      Obrigado pelo comentário, o álbum é sensacional.

      Abraços.

      Resposta

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