Entrevistão com Erasmo Carlos

 

 

Erasmo Carlos lançou no início do ano o ótimo álbum “O Futuro Pertence À Jovem Guarda” (leia resenha aqui), no qual revisita o movimento de uma forma diferente. Ele escolheu grandes sucessos daqueles tempos, que nunca foram gravados por ele, e fez versões simpáticas, enxutas e belas. Conversamos com ele sobre tudo – o álbum, a Covid-19 que o acometeu, streaming, política e desejos da carreira que ele realizou e que ainda espera cumprir. Com humildade e simpatia, ele justifica plenamente o apelido que Rita Lee cunhou: Gigante Gentil.

 

 

– Conta pra gente como surgiu a ideia de gravar um disco só com canções da Jovem Guarda que você nunca havia gravado. E como o Pupillo veio produzir o álbum?

Erasmo: Antes de mais nada, eu quis homenagear a frase “O futuro pertence à Jovem Guarda”, que é uma frase do Lênin, que serviu pra dar nome ao programa de TV Jovem Guarda, que todo conhecem, revolucionou a música brasileira dos anos 1960, dos jovens e mudou os costumes, até musicais. Ninguém reparou no que diz o resto da frase, que quer dize muita coisa, sobre quem é essa “jovem guarda”. E quem é essa jovem guarda? É o futuro, os jovens, as novas gerações, o bebezinho que está nascendo agora. O futuro pertence a eles! E a gente não tá sendo legal, a gente não está fazendo a nossa parte, não estamos priorizando certas coisas, investindo na jovem guarda. Dando saúde, educação, condições e alicerces para que eles crescam sábios, com saúde e com vigor pra que possam fazer um mundo melhor, porque ninguém tá satisfeito com o mundo atual. O negócio tá um caos! A cultura do ódio parece que está vencendo, mas eu não acredito nisso. Eu acho que as pessoas nascem boas, o meio é que as deturpa. Então eu acho que o Criador fez uma troca com o homem: “vou te dar inteligência e não vou te dar asas”. Então a gente tem que aprender a voar aqui no chão mesmo, fazer um mundo melhor pra nós mesmos.

 

 

– Então é um conceito que vai além da música, né? Você está usando as suas referências musicais, mas está falando de juventude, de condições para privilegiar os mais jovens.

 

Erasmo: Sim, sim, como eu iria exemplificar isso? Com o amor. Ele é a única arma que a gente tem pra vencer qualquer. Então eu me inspirei no amor das músicas da Jovem Guarda, aquele amor puro, ingênuo. “Você é tijolinho que faltava na minha construção”. Quer coisa mais ingênua que isso, mais inocente, mais infantil ou até mais brega? É uma maravilha, a simplicidade das músicas, a sinceridade do amor, que a gente só vê nas crianças e nos cachorros. O amor é muito forte. Eu vi no amor das músicas da Jovem Guarda uma forma de chamar a atenção sobre a frase “o futuro pertence à Jovem Guarda”.

 

 

– Falando sobre a Jovem Guarda, ainda há gente que insiste em cobrar posicionamentos do pessoal da Jovem Guarda, da época….Você acha que isso está mudando? Os críticos e intelectuais têm pouco respeito por ela.

 

Erasmo: Depende da ótica de cada um. Eu acho que quem tinha que reconhecer a Jovem Guarda já reconheceu. Quem não reconheceu, azar, já passou, é um problema dele. Eu sei que, na minha consciência, não foi um movimento alienado, não. Apenas a gente não usava armas de fogo na batalha, nossa arma era o amor, o desejo por liberdade, o grito por liberdade que a gente tinha. Isso revolucionou a juventude na época. A culpa não foi da Jovem Guarda, foi do fenômeno pós-guerra que surgiu no mundo inteiro. Na Inglaterra foi a beatlemania, na Argentina foi a “nova ola”, as novas gerações que estavam surgindo naquela hora, com uma necessidade de inverter os valores, daí que veio a contracultura, uma nova cultura, sabe, bicho? Essa necessidade mundial refletiu no Brasil sob a forma do “iê iê iê”, que a imprensa apelidou de Jovem Guarda e ficou sendo assim pra sempre. Realmente, a gente não tinha aquela certeza do que estava rolando no Brasil porque ninguém era escolarizado, cara, entende? Isso não estava nas ruas, estava nas universidades. Você vê que, todo mundo engajado nisso era universitário, eles sabiam das coisas todas. Eu só fui saber que a ditadura no Brasil torturava e matava quando eu fui pro Chile, e eu descobri um monte de exilados que estavam lá, que eram músicos. Um monte de dançarinas, batuqueiros, sambistas, que eu não conhecia. Eram médicos, advogados, professores universitários, que foram pra lá e, pra sobreviver, fizeram conjuntos musicais, tocavam na noite, fizeram show comigo. Daí que eu fiquei sabendo porque, realmente, na Jovem Guarda ninguém falava disso, a gente queria farra, dança, mulher, automóvel, casa, a gente queria isso.

 

– O single que você escolheu pra divulgar o álbum foi “A Volta”, que eu acho, pessoalmente, uma das gravações mais bonitas dos anos 1960 no Brasil. E ela é sua e do Roberto. Por que vocês nunca gravaram “A Volta”? O Roberto fez uma versão há poucos anos e você fez agora. Por que vocês não gravaram na época?

 

Erasmo: Cara, a época era muito fértil. A gente fazia um sucesso atrás do outro, então os Vips pediram a música e a gente deu. Os Vips pediram várias músicas e a gente dava, eu fiz versão dos Beatles pra eles. Até “É Preciso Saber Viver”, era pra ser gravada pelos Vips. A gente precisou pro filme “Diamante Cor de Rosa”, depois eles gravaram, o Roberto gravou, os Titãs, depois eu gravei…Foi uma coisa assim. Os Vips sempre foram intérpretes privilegiados por nós pra gravar as nossas músicas. Havia outros também, a gente dava. Eu e Roberto, a gente vivia junto, nos mesmos lugares, era muito mais fácil de compor.

 

 

– Sobre o repertório do disco, você escolheu canções que nunca tinha gravado. Como surgiu essa ideia de repertório? Você “zerou” a Jovem Guarda, sobrou alguma pra gravar?

 

Erasmo: Esse projeto já estava feito antes da pandemia, ficou arquivado. Quando começou a melhorar, a gente aproveitou e entrou em estúdio e eu repeti a mesma equipe que trabalhou no meu último disco (“Amor É Isso”, 2018), com o Pupillo de produtor musical, o Marcus Preto e o meu filho, Leo Esteves, coordenando. Então a gente se reuniu pra começar a escolher o repertório, partindo do princípio de escolher sucessos bem marcantes e coisas com as quais eu me identificava também. Tive surpresas maravilhosas, por exemplo, com “Alguém na Multidão”, dos Golden Boys, que eu nunca tinha prestado atenção na letra. Me arrepiei todo, me emocionei, é muito profunda, muito otimista.

 

 

– Tem gravações muito bonitas, “A Volta” é muito bonita, “Ritmo da Chuva”, que é uma versão, mas eu acho em português muito mais bonito que em inglês…

 

Erasmo: até “O Bom”, cara, do Eduardo Araujo. As pessoas sempre me pararam no aeroporto dizendo “ah, você é o Erasmo Carlos! Eu via você na Jovem Guarda, cantando ‘O Bom’!”. Eu sempre, por educação, concordei, né, pra não ser deselegante, dizer que não era eu. Agora podem dizer que me viram cantando “O Bom”.

 

 

 

– Erasmo, mudando um pouco de assunto, indo mais pro lado da tua vida pessoal, você teve problemas com Covid-19, esteve internado, já estava vacinado…Conta pra gente como foi, porque muita gente pegou isso, muita gente ainda está doente e tal.

 

Erasmo: cara, foi terrível. Eu tenho marcapasso, tenho problema de coração, como dizem, tenho comorbidades. Também tenho diabetes. Quando bateu a Covid, eu fui direto pro CTI e os médicos vieram atacando tudo, pra evitar o pior. Eu perdi peso, massa muscular, perdi a voz. Em alguns momentos eu pensei que não ia mais conseguir subir num palco, pensei que tinha acabado a minha vida como artista. Depois que eu melhorei, tive alta, comecei a me recuperar e fiz fonoaudiologia, acupuntura, fisioterapia… Comecei a fazer um trabalho intensivo, fui recuperando a minha forma, terminei o disco, fiz show em Porto Alegre e senti novamente a emoção de receber aplausos do público e eu pensei: “não desaprendi”. Depois veio São Paulo, Rio de Janeiro e eu já me considero recuperadão.

 

 

 

– Erasmo, vou te confessar que sou admirador da sua carreira há muito tempo. Lá em casa, eu com uns cinco anos, tinha um compacto com ‘Cachaça Mecânica”, que eu acho uma musica maravilhosa. Como você lida com os seus discos dos anos 1970? São discos que tiveram um reconhecimento crítico recente, tardio até e são obras maravilhosas. Você tem um disco preferido entre esses? Um xodó?

 

Erasmo: Eu gosto da maioria deles, tem uns três, quatro, que eu não curto muito. Eu gosto muito do “Erasmo Carlos e Os Tremendões” (1970), que veio antes do “Carlos, Erasmo” (1971). Todo mundo acha que eu mudei no “Carlos, Erasmo” mas, de fato, eu mudei mesmo no “Tremendões”. Eu gosto do “Sonhos e Memórias” (1972), “Projeto Salvaterra” (1974), o “Erasmo Convida 1” (1980) e o “2” (2007), o “Mulher” (1982), são discos assim, preferidos da minha carreira. Tem sido assim. A Universal está relançando o “Carlos, Erasmo” em LP, edição nova. Na Inglaterra também estão relançando o “Carlos, Erasmo” e o “Sonhos e Memórias” em LP.

 

 

 

– Falando dessa questão da sua carreira, sempre com várias parcerias com o Roberto. Vocês se encontram com frequência? Como é a relação com ele?

 

Erasmo: é legal. A gente não tem se visto ultimamente, mas se fala muito por telefone, aniversários, Natal, mas nunca mais compusemos juntos. A carreira dele está mais internacional, daí são outras direções, né? Ele gravou com a J.Lo. Daí a gente combinou que não divide mais a autoria das músicas românticas. Na verdade, a gente combinou isso há uns dez anos. Então, de dez anos pra cá, nas músicas românticas, cada um faz a sua, só se for um tema aleatório, a gente assinaria juntos.

 

 

 

– Falando da tua carreira, mais recentemente, você tem a preocupação de dialogar com cantores mais jovens, que estão surgindo. Já foi assim no passado com Marisa Monte, Renato Russo…Emicida, mais recentemente. Você ouve muita música em casa?

 

Erasmo: Cara, a pandemia me ensinou coisas…eu nunca na minha vida ouvi tanta música como agora. Estou maravilhado com as possibilidades que existem. Tá tudo aqui, na minha cabeça, eu pretendo apresentar um trabalho novo, com compositores novos. Harmonias novas, que amadureceram na minha cabeça. Eu aprendi a fazer playlist, descobri muitos cantores novos e antigos, que eu não conhecia. Então eu estou maravilhado, fiz uma playlist que já está chegando em umas mil músicas, com as músicas que eu mais gosto, desde o fim dos anos 1950 até hoje. Só acessar no Spotify, chamada “Erasmo Carlos”. Vai lá, bicho. Não perca tempo em pesquisar, eu já pesquisei pra você.

 

 

 

– Sobre o Spotify, aproveitando o gancho, como você lida com o streaming?

 

Erasmo: Bicho, eu vou fazendo minhas coisas. Acompanho, de vez em quando eu vejo quantas pessoas me ouviram, meu filho me ajuda nisso, minha mulher, a Fernanda, também. Ela sempre tá me mostrando curiosidades, coisas que eu nem sabia que existia, ela me mostra. Daí eu vou me inteirando dessas coisas. Eu não fico preocupado com o resto, eu sou o produto, eu tenho que continuar fazendo. Não é só por necessidade mercadológica, eu sou assim, eu faço o que eu gosto e gosto do que faço. Não é sacrifício estar cantando, é um prazer imenso, então eu sempre estou fazendo.

 

 

– Como você está vendo essa situação do país atualmente? Você é otimista? Como você lida com isso?

 

Erasmo: eu acredito no ser humano, tenho fé, sou um cara positivo. Eu procuro reverter as coisas, pra poder contribuir. Eu acredito que vai melhorar, as próximas eleições estão aí, que respeitem suas convicções, escolham as pessoas certas para fazer o país melhor pra gente. A gente merece ser uma Dinamarca, merece ser mais que a Dinamarca. Honestidade, trabalho, amor, é tudo isso.

 

 

 

– Em 2019, você teve o lançamento do “Minha Fama de Mau”, com o Chay Suede te interpretando. Foi um dos filmes nacionais mais legais que eu vi nos últimos tempos. ELe mostra o início da tua carreira, no fim dos anos 1950 e tal. Você tem saudades dessa época, do Rio?

 

Erasmo: Bicho, eu não sou saudosista. Não tenho nostalgia de ficar “ah, meu Deus, como o Rio era bonito!”. Tinha problemas naquele tempo também. Quando eu quero me lembrar de alguma coisa, eu fecho os olhos e me lembro. Mas eu vivo o agora, fico pensando o que eu vou fazer agora, sou um cara que fica pensando no futuro. Não vivo no passado, não. Tá guardado aqui na mente, foi bom e acabou.

 

 

 

– Eu gosto muito de “Além do Horizonte” e, ao ler a biografia do Tim Maia, que era seu grande amigo, ele diz que a melhor versão dessa música é que vocês gravaram juntos no “Erasmo Carlos Convida” (1980), que tem a Banda Vitória Régia. Você concorda?

 

Erasmo: Eu gosto de todas as versões, são todas legais. Mas quando ele falou isso naquela época, ele não tinha ouvido a minha versão para a novela das oito. Não tinha ouvido a versão do Jota Quest, que veio depois. Mas a versão que eu mais gosto dessa música é a da Nara Leão, eu acho muito bonita, ela conseguiu me dar a magia do “além do horizonte”, de pensar em qual felicidade existe além do horizonte. Aquele assoviozinho no solo, uma maravilha. Uma música alegre, esperançosa, pra mim ela fez a melhor versão. Eu acho linda a gravação com o Tim, como eu gosto da do Roberto, do Jota Quest. Cada um colocou sua marca, cada um gravou bem.

 

 

– Última pergunta: você tem várias parcerias com o Roberto, com outros artistas, mas, com quem você gostaria de ter feito uma parceria e ainda não fez? Vale gente que está aqui, vale gente que já subiu…com quem seria? Pode ser mais de um.

 

Erasmo: As coisas vão surgindo, eu não procuro nada, elas vão acontecendo. Oportunidades surgiram, como, por exemplo, com o Caetano Veloso. Eu tinha muito desejo e fui parceiro dele há pouco tempo. Eu nunca solicitei nada. Agora, por exemplo, eu estou compondo com o Tim Bernardes (do Terno), já é outra experiência, um cara jovem, eu gosto dessa troca, de aprender novas formas de compor, seja em letra, seja em música. De repente, quem sabe, um dia um não faço com o Gilberto Gil? Sabe, sei lá, com o Paulinho da Viola. Depende muito de oportunidades.

 

 

– E com quem não está mais aqui?

 

Erasmo: Ah, isso é simples. João Gilberto. Uma coisa que eu não consegui fazer, uma frustração que eu tenho, ele nunca gravou uma música minha ou de Roberto. Eu tenho até na cabeça a música que eu gostaria que ele cantasse. Eu imagino ele, fecho os olhos e vejo ele cantando “Café da Manhã” – cantarola, imitando o pai da Bossa Nova – “amanhã de manhã, vou pedir um café pra nós dois…”, com aquela batidinha dele no violão. Ficou pra trás, não consegui realizar. Eu tive a honra de gravar “Olha”, com o Chico Buarque, na levada de bossa lenta, quase um samba-canção, foi uma experiência muito linda pra mim, que não se paga.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Entrevistão com Erasmo Carlos

  • 23 de março de 2022 em 15:19
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    Baita entrevista que recomendo a todos. Erasmo é realmente um baita de um artista e um cara muito simpático e articulado. Sua autobiografia é sensacional! Parabéns, meu caro CEL!

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