E assim começou o Lollapalooza…

 

 

Você sabia que a primeira edição do festival Lollapalooza começou como turnê de despedida do Jane’s Addiction? O festival aconteceu em 1991 e no ano anterior a banda havia gravado Ritual de lo Habitual, que alimentava boa parte do repertório dos shows. As coisas já não andavam bem entre os integrantes, divididos pelo modo como haviam decidido lidar com o (ab)uso de heroína e outras substâncias. A banda de fato não sobreviveria ao primeiro Lollapalooza, mas voltaria a se reunir em dois outros períodos. Ritual de lo Habitual acabou sendo um epitáfio provisório e ao mesmo tempo o registro da banda em seu auge. Em 2020, o álbum completa 30 anos e a data merece ser lembrada.

 

Das 9 faixas que compõem Ritual de lo Habitual, apenas duas não são contemporâneas à gravação do álbum anterior, Nothing’s Shocking, lançado em 1988. A banda foi formada em 1985, reunindo Perry Farrell, Eric Avery, Dave Navarro e Stephen Perkins. Tornou-se conhecida no circuito de shows em Los Angeles com uma sonoridade que diz muito sobre alguns dos caminhos do rock no final dos anos 1980, quando gêneros que corriam por raias distintas começaram a se entrelaçar.

 

A música do Jane’s Addiction é feita de um caldeirão picante de influências. Ritual de lo Habitual mostra bem isso. O álbum começa com “Stop!”, sua letra apontando para nossa destruição do planeta e sua guitarra funkeada e ao mesmo tempo distorcida (Navarro). O andamento da guitarra é quebrado por evoluções complexas, acompanhadas pela cozinha vigorosa de baixo-bateria (Avery-Perkins). A música chega a sua metade e aí parece outra, remetendo ao pós-punk gótico do Psi Com, primeira banda de Perry Farrell. Em seguida, volta ao frenesi que se poderia rotular de funk punk.

 

Agora faça de conta que está com o vinil e troque o lado para escutar a primeira faixa, “Three Days”. Ela começa lenta, toda cheia de climas. Passa para uma levada que prepara, em evoluções que tem algo de rock progressivo, o que algumas pessoas rotulam como metal alternativo. Para fazer tudo isso a música toma quase 11 minutos! Comenta-se que se trata da “Stairway to Heaven” da Jane’s Addiction. De todo modo, ela é bem diferente de “Stop!”, mostrando que as influências variadas estavam longe de chegar sempre a um resultado igual.

 

Dave Navarro caracterizou bem o caldeirão da Jane’s Addiction ao reivindicar, como parte do som da banda, The Velvet Underground, Led Zeppelin, Bauhaus, Van Halen e Rush, acrescentando ingredientes tomados do funk, do punk, da música clássica, do reggae e da world music. As músicas mais rápidas foram colocadas no lado A. Além de “Stop!”, “No One’s Leaving” e “Ain’t no Right” (todas com muita distorção); em seguida, “Obvious” (novamente flertando com o gótico encorpado); para fechar, “Been Caught Stealing”, uma das mais conhecidas músicas da banda, com sua poderosa linha de baixo. A faixa traz ainda a indefectível participação de Venice, cachorra de Farrell. “Been Caught Stealing” é tão suingada quanto “Stop!”, mas de diferentes maneiras. A fúria sônica de “No One’s Leaving” conversa com a fúria tribal de “Ain’t no Right”, mas as semelhanças não vão além. Em todas, nota-se uma agressividade punk; em todas, solos de guitarra bem pouco punks.

 

No lado B, escutamos, além de “Three Days”, com sua letra inspirada por um ménage a trois quimicamente aditivado, mais três faixas: “Then She Did”, sobre o suicídio da mãe de Farrell e a morte por overdose de uma das pessoas de “Three Days”, que leva um arranjo de cordas para acompanhar suas progressões; “Of Course”, espécie de valsa indiana, com ênfase em violinos e percussão; “Classic Girl”, que leva o gótico inglês e o Led Zeppelin para o litoral da Califórnia, e acaba soando como um folk turbinado. Portanto, o álbum encerra com uma ode a uma “garota clássica” após ter passado por uma pregação nietzschiana (“Não há certo ou errado, apenas prazer e dor”, em “Ain’t no Right”) e um elogio aos pequenos roubos (no espírito “se não fui pego, é meu”, em “Been Caught Stealing”). No meio, muito sexo e drogas, e algumas mortes.

 

Modéstia e despretensão não estão entre as qualidades de Farrell, que, além de talentoso vocalista, à época compunha poemas (podemos escutar um deles no início de “Three Days”), gravava filmes (procure por Gift na internet) e posava de surfista (como vemos no vídeo de “Stop!”). Ele assina a produção ao lado de Dave Jerden, que já trabalhara com os Rolling Stones em Dirty Work (aliás, o primeiro álbum do Jane’s Addiction, registro de uma apresentação, trazia a versão da banda para “Sympathy for the Devil”) e acompanharia o Alice in Chains em seus dois primeiros álbuns. Como percebemos, há muito de autobiográfico nas letras de Ritual de lo Habitual. Farrell ainda fala sobre si em “Of Course” e “No One’s Leaving”, relatos de sua adolescência. O videoclipe de “Classic Girl” traz trechos de um filme no qual o vocalista aparece ao lado de Casey Niccoli, então sua esposa e musa, ela mesma personagem em “Three Days”.

 

O casamento de Farrell com Niccoli, que produziu os videoclipes da Jane’s Addiction naquela época, esclarece algo sobre a estética de Ritual de lo Habitual. Foi uma cerimônia conduzida por um sacerdote da Santería, uma religião de origem cubana que vem a ser uma das expressões do culto africano dos orixás em sua transposição para as Américas. Farrell nunca se considerou adepto da Santería, mas frequentava as lojas que vendiam artigos religiosos. Provavelmente daí vieram os objetos que compõem a montagem fotográfica que está na contracapa do álbum, que de resto lembra um mercado de feitiçaria daqueles que existem em cidades mexicanas. A capa é também uma elaboração de Farrell, uma composição barroca, repleta de objetos religiosos e mágicos. No seu centro, uma escultura que retrata, quase como uma animação, o trio que protagoniza a letra de “Three Days”.

 

Essa capa, aliás, esteve no centro de uma polêmica interessante. A Warner, gravadora da banda, já havia feito reservas, mas Farrell e seus parceiros bateram o pé. Logo que o álbum foi lançado, uma loja em Michigan foi autuada por “distribuir material obsceno”. O processo não deu em nada, mas propiciou a decisão de que Ritual do lo Habitual teria duas capas. A capa alternativa àquela dos corpos “obscenos” traz apenas informações (nome da banda, faixas, etc), mas também o texto da 1ª. Emenda à Constituição estadunidense, aquele em que baseia o princípio da liberdade de expressão. Na contracapa, uma declaração da banda, aproximando a época dos tempos nazistas: “um país inteiro liderado por um lunático”.

 

Lembremos que em 1990 os Estados Unidos estavam no terceiro governo republicano: desde 1981, dois mandatos de Ronald Reagan, sucedido por George Bush (pai) até 1993. Foi nesse período que, graças à pressão de grupos conservadores, passou a ser utilizado o selo que existe até hoje: parental advisory explicital content. Claro, a capa de Ritual de lo Habitual vinha com esse selo, assim como a do álbum anterior, que já recorrera à exposição da nudez. E a primeira faixa era introduzida por um anúncio em espanhol, uma voz feminina em tom sedutor: “señores y senhoras, nosotros tenemos más influencia con sus hijos que tu tiene, pero los queremos…”.

 

O Lollapalooza tinha tudo a ver com a resistência às investidas do conservadorismo e com a contraproposta de uma “nação alternativa”. Como um agitador cultural, Farrell se esmerou em conceber o festival como algo que juntasse música com outras (atr)ações, como artistas de circo, tatuadores, espaços para leituras e outras atividades culturais, abrindo também espaço para grupos com causas sociais. O evento começou itinerante, passando por 20 cidades estadunidenses. Não eram muitas as bandas. Siouxsie and the Banshees era a veterana, o que faz todo o sentido considerando a parcela gótica do DNA da Jane’s Addiction. Da geração mais recente, destaque para o hip hop pesado do Ice-T’s Body Count, o punk industrial do Nine Inch Nails e o hard rock-punk-funk-jazz do Living Colour. Junto com o Jane’s Addiction, bandas e artistas sem os quais os anos 90 não seriam o que foram.

 

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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