Doolittle Trintão

A primeira vez que ouvi falar de Pixies foi na extinta Bizz. Em algum exemplar de 1989, lá estava, na seção Letras Traduzidas, uma canção da banda de Boston. Acho que era “Hey”, a 13ª faixa de “Doolittle”, o segundo disco dos caras, lançado naquele ano mesmo. Dei uma passada de olhos na tradução e segui em frente, sem muito interesse. Alguns anos depois me dei conta de que havia perdido uma das manifestações mais evidentes do rock em seu tempo, Pixies em 1989, quando as coisas estavam mudando. Eu preferira me concentrar em outra frente de avanço, no caso, capitaneada pelo Living Colour e seu primeiro disco, “Vivid”. Me sentia mais à vontade naquela sonoridade com mais groove, mais influência de funk e soul, do que no rock nerd e maníaco dos Pixies. Depois, quando o grunge estourou, vi o quanto daquela maluquice infernal havia na musicalidade da ponta de lança dos grupos de Seattle, o Nirvana.

Aliás, aqui vai um parênteses: existiu o grunge e existiu o Nirvana. O fato de estarem geograficamente contidos no mesmo contexto, não faz de Cobain e seus amigos um grupo representativo do som da cidade chuvosa do noroeste americano. Este posto fica para ser disputado entre Alice In Chains e Soundgarden, com o Pearl Jam correndo numa raia paralela. O Nirvana tem parentesco é com este rock alternativo, universitário, punk, maníaco-depressivo que se materializou nos Pixies àquela época. Em 1989, lembrem-se, o mundo era outro, muito diferente do que se tornaria 365 dias depois. Quem conseguiu capturar esta polaroide de comportamento e som, fez o que quase ninguém fez. E os Pixies fizeram, herdeiros que eram da tradição de uma cidade com cena musical proficiente o bastante para gerá-los e a bandas como Dinosaur Jr e Lemonheads, por exemplo, em seus respectivos inícios como formações punk.

Pixies, no entanto, não era punk, felizmente. Este era apenas um ingrediente em sua receita, na qual ainda cabia surf music, Beatles, Beach Boys, música latina, referências cinematográficas, Iggy Pop e Husker Dü. Era, portanto, uma mistureba fadada a um destino sem meio-termo: ou explodia ou iria para o ralo da história. Felizmente deu certo e, após um EP e o primeiro disco, “Surfer Rosa”, lançados em 1987 e 1988, respectivamente, a banda se preparava para seu segundo álbum. Na produção, Gil Norton, sujeito inglês que havia trabalhado com Echo & The Bunnymen e outras bandas da Velha Ilha. Sua presença é um dos motivos pelos quais, na briga que todo fã do grupo adora promover, “Doolittle” vence “Surfer Rosa”. O som é melhor, privilegia os traços marcantes do quarteto, a saber, o baixo e voz de Kim Deal e a guitarra de Joey Santiago, que, juntos, forjaram uns 75% do rock alternativo americano praticado nos anos 1990.

Além destes dois traços, há o mais notável: Black Francis. O vocalista, que hoje atende pelo nome de Frank Black e batizado como Charles Thompson IV, é um dos sujeitos mais iconoclastas surgidos no rock do fim do século passado. Ele condensa a imagem dos Estados Unidos que surgem como antítese social e comportamental à lógica dos yuppies neoliberais dos anos 1980. Gorducho, intelectual, maníaco e nerd, Black Francis vai assumir os vocais dos Pixies conferindo a doideira tragicômica e cdf que faltava à banda. Eram sujeitos do fundo da sala de aula, inclusive Francis, mas ele era aquele tipo de pessoa tão inteligente que tirava nota alta sem precisar estudar. Conhecem o tipo, não? Da cabeça dele, surgem as referências de Luis Buñuel que preenchem a letra de “Debaser”, a canção que abre “Doolittle”. Ouvida hoje, 2019, é possível notar como a visão da banda, a dinâmica de silêncio/porrada, o timbre de baixo de Kim e os vocais interplanetários de Francis foram decisivos para o rock se adaptar a novos tempos que já haviam chegado.

E, claro, não para por aí. Ainda há canções impressionantes em “Doolittle”: “Tame”, “La La Love You”, “Wave Of Mutilation”, uma trinca de esporros melódicos que soam como pilares de uma civilização perdida. Além delas, algo que poderia ter sido gravado pelo Nirvana inciante, “I Bleed”, com vocais divididos entre Francis e Deal, em meio a comichões de guitarra engendrados por Santiago. Só que, muito mais difícil que criar uma obra complexa dentro do universo do rock alternativo em mutação, aliar toda essa informação ao bom e velho pop radiofônico não é para muitos. Pois os Pixies se saíram com dois hits dourados com este álbum, a saber, a contagiante “Here Comes Your Man” e a apocalíptica e anti-criacionista “Monkey Gone To Heaven”. E ainda cravo uma favorita pessoal, lá no fim do álbum, a inesperada “Gouge Away”, que parece ter dez minutos de duração nas suas mudanças de clima, contidas em seus 2:45 minutos.

Num tempo em que REM, Sonic Youth, Pixies e o pessoal do funk rock nascente significavam o futuro em movimento do rock americano para os anos 1990, “Doolittle” tem lugar de destaque na prateleira dos grandes álbuns deste período. É uma obra-prima superlativa e cheia de si. Parece um personagem coadjuvante de Arquivo X, daqueles que surgem de vez em quando e salvam o dia para Scully e Mulder. É um desses representantes do quão legais os Estados Unidos podem ser. E agora está aí, trintão e ainda em forma.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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