“Sandinista” – O “White Album” do Clash

 

Quis o destino que “Sandinista!”, o quarto álbum do Clash, chegasse às lojas quatro dias após a morte de John Lennon. Não há vínculo visível entre esta realização sonora do quarteto londrino e o legado dos Beatles – ou de Lennon, em especial – mas, para o rock’n’roll, significou uma pequena, insuficiente, mas legítima, compensação.

Naquele dezembro de 1980, o mundo era bem diferente do que nos tempos nos quais o sonho tinha acabado para os Beatles e para o ritmo, como válvula de escape para a juventude planetária e suas utopias de igualdade de direitos e condições – defendida por artistas como Lennon, dez, doze anos antes – provaram ser inatingíveis até então. Eu gosto, historiador que sou, de pensar que John gostaria de ver uma banda inglesa, um quarteto como os Beatles, lançar um disco com o título que aludia à Frente Sandinista de Libertação Nacional da Nicarágua, em plena Inglaterra de Thatcher. E nem precisava ser a obra-prima que foi. “Sandinista!”, pela fragmentação, pela amplitude musical, pela extensão, é uma espécie de “Álbum Branco” do Clash.

 

As relações de “Sandinista” com o rock feito até então precisaram de uma atualização total, especialmente se levarmos em conta o punk rock, certamente uma vertente importante, mas limitada em termos de espectro sonoro. Meu gosto pessoal sempre valorizou mais o The Clash e o The Jam nesta seara estilística, justo por serem bandas que ultrapassaram barreiras e partiram para algo maior que elas. No caso do Jam, Paul Weller à frente, o objetivo era ser o mais negro possível, mergulhando nas águas do R&B e das vertentes mais ardidas da soul music. No caso do Clash, era ser maior que a vida, abraçar o mundo por conta da diversidade musical como meio de contemplar uma espécie de luta mundial contra limitações de qualquer ordem. Conseguiram.

 

Como bons revolucionários que sempre foram, Joe Strummer e Mick Jones – os cérebros pensantes do Clash – e seus escudeiros, Paul Simonon e Topper Headon, sacaram que o futuro estava na música que vinha da diáspora. Por este termo entendemos o fluxo de informações culturais que formava uma rede de mão dupla entre a África e os destinos no Caribe e Américas, onde brotaram manifestações e identidades que amplificaram – e ajudaram a formar – o conceito de cultura negra. Ritmos como reggae, soul, funk, R&B, dub e o nascente rap, eram o que havia de mais moderno e incontrolável naquele tempo e, se você queria ir de encontro ao futuro, especialmente em termos políticos e de contestação, deveria abraçá-los sem restrições. Foi o que fez o Clash.

 

As pessoas são mais acostumadas a enaltecer o disco anterior da banda, “London Calling”, como um marco na história do rock. Não estão erradas. Lançá-lo em 1979, como disco duplo, custou ao Clash muita luta com a Epic Music, sua gravadora. Quando voltaram, um ano depois, com um disco triplo, dá pra imaginar o tamanho da dor de cabeça. A banda então resolveu – num movimento inédito e pouco lembrado – abrir mão de seus royalties sobre as primeiras 200 mil cópias do disco, para baixar o preço final ao consumidor, resultando num custo que seria de um álbum simples e não um colosso amalucado de 36 canções, perfazendo um total de 144 minutos. A Epic não teve como barrar a ideia dos sujeitos. A banda fez um périplo entre Londres, Nova York e Kingston para conseguir registrar as canções e colocá-las nas rádios. Para isso prensou uma versão chamada “Sandinista Now!”, contendo apenas as faixas que poderiam se transformar em singles. A tarefa de mostrar ao público o que a banda estava fazendo e iria lançar coube a uma canção sensacional: “Bankrobber”, que, no entanto, não faz parte de “Sandinista”, ainda que tenha sido gravada nas sessões do disco.

 

Naquele tempo, havia a chance de um lançamento ser feito apenas em um país. Pode parecer impossível em tempos digitais como os nossos, mas acontecia. Este é o motivo de “Bankrobber” estar em uma coletânea, chamada “Black Market Clash”, que foi para as prateleiras de Estados Unidos e Canadá em outubro de 1980. Apesar de compilar gravações raras feitas pela banda entre 1977 e 1980, ela não saiu na Inglaterra à época, tornando- se um item raríssimo por um bom tempo. Era um tempo borbulhante para a banda, que parecia completamente diferente de um ano antes. Se “London Calling” a colocou entre os grandes do rock, colocando a cara para fora do próprio punk, “Sandinista” a colocava no mundo, num posto que só gente com visão ampla, com Talking Heads, Brian Eno, entre poucos outros, estava.

 

“Sandinista” é um desfile de belezuras, umas perfeitas, outras tortas, umas sem sentido, mas tudo dentro deste contexto, em que uma banda revolucionária, vivendo num país governado pelo conservadorismo liberal, arremetia para o futuro, abraçando uma perspectiva muito maior. O mais legal no disco é, justamente, o abraço apertado que o Clash dá a ritmos negros da diáspora. É refrescante ouvir canções como “Junco Partner”, por exemplo, um reggae da cabeça aos pés, conduzido com certa dose de psicodelia e indigência planejada. É igualmente legal ouvir “Hitsville UK”, uma homenagem afetuosa à gravadora americana Motown, que era conhecida como Hitsville USA”, da qual saíram vários ícones da soul music. É impressionante ver como “The Magnificent Seven”, a faixa que abre o disco, parece gravada uns 50 anos depois de “London Calling”, com uma linha de baixo gorda e perfeita. E é incrivelmente legal dar de cara com coisas como “Ivan Meet GI Joe”, uma doideira psicodélica com linha melódica próxima do funk, que fala da Guerra Fria com perspectiva moderna e irônica. E ver o “velho” Clash dar as caras, de vez em quando, em coisas como “Police On My Back”.

 

E há coisas desconcertantes, muitas. A ironia de “Something About England”, uma espécie de “auto-London Calling”, a doideira canto-falada de “The Crooked Beat”, a dobradinha “One More Time”/”One More Dub”, a latinidade de “Let’s Go Crazy”, o inventário dos conflitos internacionais nos quais os Estados Unidos “levaram a democracia” a outros países, em “Washington Bullets”, os vocais infantis em “Carreer Opportunities”, o anticlímax intencional no encerramento de “Shepherd’s Delight”, a lista é imensa.

 

O Clash quis oferecer ao seu fã um registro sonoro muito preciso sobre seu momento de então. O quanto estava absorvendo novas influências, reajustando o foco de seu discurso e se preparando para uma modernidade que não chegou a viver totalmente, uma vez que encerrou atividades cinco anos depois, quando lançou o controverso “Cut The Crap”, sem a presença de Mick Jones. Aliás, tanto ele, quanto Joe Strummer, seguiram como artistas totalmente conscientes de sua visão musical, comprometida com um discurso nítido, o de apontar desigualdades e dar voz a desfavorecidos, especialmente pelo abraço a suas manifestações culturais, nunca se apropriando, mas as incorporando ao seu próprio conjunto de influências. Discos como “Sandinista!” ficam mais nítidos com a passagem do tempo, como são os grandes fatos históricos. Hoje, quase 40 anos depois de seu lançamento, dá pra entender completamente sua genialidade. E de seus criadores, não pela musicalidade, mas pela percepção de um mundo que mudava e precisava de vozes.

 

 

Foto: Bob Gruen 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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