Curando a ressaca do primeiro turno

 

 

Para quem pensava que Lula venceria ontem, ao fim do primeiro turno das eleições, a surpresa foi grande. Enorme, eu diria. Contra a maioria dos institutos sérios de pesquisa, a candidatura do atual ocupante da presidência conseguiu amealhar um número suficiente de votos para encurtar a distância – que era de mais de dez pontos percentuais – para cinco. Mais que isso: Lula só conseguiu assumir a dianteira da disputa quando faltavam cerca de 30% dos votos. Ou seja, o atual ocupante demonstrou força, mas, se olharmos com frieza, algo impossível ontem, foi Lula que manteve sua importância no cenário político nacional. Porém, há alguns pontos sérios que precisam ser analisados.

 

O grande antagonista do PT acabou. O PSDB não conseguiu nenhum resultado importante, apenas conseguiu mandar candidatos para o segundo turno das disputas pelos governos de Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul, ambos em posição desvantajosa. Mas, com o encolhimento do partido, surge, talvez, uma das explicações para a força que o conservadorismo demonstrou ontem. Sai a direita “esclarecida” do PSDB e entra em campo a ultradireita atual, que parece ter menos pudores e menos limites. Que parece flertar abertamente com neopentecostalismo, com fascismos, com autoritarismos e que exibe o total desprezo por pautas humanistas. Um desprezo, diria eu, intrínseco, ressentido, incurável. No âmbito econômico, o mais aberto e deslavado neoliberalismo, uma vez que esta ultradireita é praticada por gente muito abonada. Sendo assim, o Brasil se torna um país com uma direita fraca, mas com uma ultradireita fortíssima, um paradoxo típico de um lugar como o nosso, com severas distorções sociais e econômicas.

 

 

A prova disso é a eleição em massa de nomes ligados ao atual governo. Ministros e figuras que integraram o time do atual ocupante, mesmo os que saíram brigados ou estremecidos, conseguiram o acesso ao Legislativo. Da esposa do ex-juiz sergio moro, rosângela moro (ele, Senador pelo Paraná, ela, Deputada Federal por São Paulo), passando pelo astronauta marcos pontes, pela ex-ministra damares correia, pelo ex-ministro ricardo sales, o ex-ministro eduardo pazuello, o ex-vice presidente mourão, o ex-chefe da casa civil, onyx lorenzoni, todos conseguiram cargos de Senador ou Deputado Federal. Isso mostra um viés típico desta ultradireita, que é o apreço por pessoas que não seguem normas éticas ou demonstram compostura em suas funções. No caso específico dessas pessoas, o que se viu foi o contrário da ética, resultados pífios no cumprimento das missões que desempenhavam. O Ministério da Ciência, sob o astronauta, teve o pior desempenho de todos os tempos, com orçamentos ridículos e ataques sistemáticos às universidades públicas e centros de pesquisa. O Meio Ambiente, sob sales, exibiu números assustadores de desmatamento na Amazônia e Pantanal. O ex-ministro pazuello foi um dos responsáveis diretos pela gestão criminosa da pandemia de covid-19, enquanto a ex-ministra damaes incentivou pessoas a invadir um hospital para comprovar se uma menina havia sido realmente estuprada.

 

 

Além deles, a Deputada Federeal reeleita, carla zambelli, o filho do atual ocupante da presidência, eduardo bolsonaro, o integrante do mbl, kim kataguiri, entre outros, conseguiram a reeleição para a Câmara dos Deputados, mostrando que a população aprova seu trabalho. E o trabalho desses parlamentares passa, diretamente, pelo apoio irrestrito ao programa de governo do atual ocupante da presidência, que mantém a instância do Orçamento Secreto, enquanto retira da educação, da pesquisa, da saúde, da habitação e da geração de empregos os recursos necessários para alavancar qualquer tentativa de melhora na vida das pessoas.

 

Mas não é só isso, gente.

 

Analisar esse resultado requer um olhar mais crítico para outros fatores, que podem explicar a opção pela ultradireita no Brasil. Além da incapacidade da antiga direita em traduzir os anseios de uma parte significativa da população brasileira, que não parece se importar com pandemias ou com necessidades de vulneráveis, temos uma mídia que opta por afagar este tipo de político enquanto não demonstra a mesma tolerância-boa vontade com elementos da esquerda. A História nos ensina que é mais fácil dialogar com essa gente, que é estranha, mas não vai mexer em privilégios, do que com pobres que vão colocar tais benesses em risco. Uma regra que vale desde os anos 1930, basta ver os antecedentes da Segunda Guerra Mundial. O flerte com essas pessoas, com esta pauta, tudo em nome de uma economia que mantém o país de joelhos ante o cenário mundial, é o que decreta a desigualdade de espaços em programas e coberturas, bem como a parcialidade delas.

 

 

Por fim, as esquerdas brasileiras passaram da hora de se adaptar ao novo tempo. O cenário de 2022 não é mais o cenário do século passado e o país não tem um líder progressista à altura de Lula. Quem o substituirá quando ele se aposentar? Quem tem a conexão de falar com as massas de miseráveis, dialogar com vários espectros da sociedade, extrair de um cenário conservador historicamente comprovado uma série de benefícios como ele fez em seus primeiros governos? Quem teria tal capacidade? E mais: quem teria força para administrar uma luta constante contra esta ultradireita de modos duvidosos que adquiriu hegemonia no país? Imagine se Lula não disputasse as atuais eleições. Quem teria chance de bater o atual presidente e a força da máquina pública, do orçamento secreto e a conivência midiática? Um dos mais promissores neste quesito, Marcelo Freixo, não conseguiu sequer ir ao segundo turno na disputa pelo governo do Rio de Janeiro. Ele foi batido pelo atual governador, claudio castro, sem qualquer tradição política, acusado de inúmeras irregularidades. O povo do Rio, um dos estados mais afetos pela proliferação de igrejas neopentecostais e pelas milícias, prefere manter um governante deste tipo do que abrir espaço para alguém que dialoga com minorias e valoriza direitos humanos.  Não dá pra dizer que isto é “só burrice”, é, claramente, uma postura política consolidada.

 

Mais séria do que a virtual dificuldade que Lula terá para governar o país, caso vença o segundo turno, é saber que a tendência atual do Brasil é flertar com uma realidade em que os pobres são pobres por culpa deles e o presidente do país imita gente sufocada pela covid-19 em tom de deboche, após repetir que “não é coveiro” ante a morte de mais de 650 mil pessoas.

 

Mesmo assim, Lula obteve cerca de 6 milhões e meio de votos a mais que a outra candidatura e deve confirmar a vitória no segundo turno. Se isso realmente acontecer, o terceiro mandato presidencial deve ser o seu maior desafio.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

5 thoughts on “Curando a ressaca do primeiro turno

  • 11 de outubro de 2022 em 18:27
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    Cirúrgico, CEL.
    Ninguém imaginava a vastidão do esgoto depois que foi retirada a tampa. E o mais preocupante é que, mesmo diante de uma provável vitória de Lula no segundo turno, os ratos vão permanecer nas ruas, por se acharem os verdadeiros guardiões da razão. Dias difíceis

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  • 5 de outubro de 2022 em 09:56
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    Sou do Rio Grande do Sul, especificamente de Uruguaiana/RS, cidade fronteiriça com a Argentina, minha cidade e totalmente dominada pelo setor arrozeiro todos afeitos a apoiar e apoiaram o Bolsonaro, alem disso e impressionante a influencia dos evangélicos, minha mãe e evangélica e talvez por causa da influencia dos filhos votou no Lula, mas não deixou de votar no Mourão e na candidatura a reeleição do Eduardo Leite. As pessoas parecem hipnotizadas, será que negros e pobres sabem realmente o que ultra direita?, realmente fico pasmo e assustado com tudo isso, parece um pesadelo.
    Eu até comentei com a minha mãe no domingo depois do fim das apurações que mesmo o Lula ganhando as eleições no segundo turmo ( coisa que não acredito ), como ele ira governar com a maioria do senado e da camara contrários e inimigos declarados, provavelmente já estariam articulando um impeachment, o governo Lula não duraria nem seis meses. por isso meu coração esta partido, vou votar em Lula novamente mas sabendo que o futuro e sombrio, muito sombrio.

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    • 5 de outubro de 2022 em 10:23
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      Eu ainda confio na vitória do Lula no segundo turno, mas há um movimento de ordem psicológica em curso, algo que me parece muito novo e assustador, de fato. As pessoas estão abrindo mão do bom senso e da capacidade de ouvir o outro em favor de um pacote ideológico, cheio de ressentimento e vazio de propostas que lhes assegurará uma vida péssima, mas livre do PT e do comunismo. E as pessoas estão topando, comprando isso sem questionar.

      É o cúmulo da falência da educação e da cultura como ferramentas de identidade.

      É triste e, sim, assustador.

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  • 4 de outubro de 2022 em 21:22
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    Meu caro, eu não sei. As igrejas têm um poder muito forte, substituíram as organizações sociais populares, que tinham viés esquerdista e popular. Essa gente se protege, se perdoa, se promove. Já tive chance de ver como funciona ao vivo em ambiente de trabalho. A lógica se reproduz para a sociedade. É algo sério, mas que tem origem na ausência do Estado, ou seja, eles entram para a máquina pública para mantê-la afastada de quem mais precisa. É um jogo engenhoso, cruel e eficaz.

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  • 4 de outubro de 2022 em 12:03
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    Grande reflexão, CEL !!!

    Confesso que estou bem assustado e desanimado. Sendo professor da rede pública do Rio, fiquei perplexo com a quantidade de colegas votando em Castro e Bolsonaro.
    Ainda preciso de mais tempo para assimilar tudo isso. A derrota de Freixo no primeiro turno só me deixou mais desesperançoso, mesmo sabendo que a tendência seria a vitória do atual governador. A questão que fica é: O que podemos fazer?

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