Crônicas da solidão urbana com Felipe Aud
Felipe Aud – Acumulado
40′, 11 faixas
(Independente/Tratore)

Felipe Aud deveria estar bombando nas mídias sociais, requisitado para participar de podcasts e sendo ouvido/resenhado por aqueles que se interessam pela boa música brasileira do século 21. Seu álbum de estreia, “Acumulado”, é um compêndio de boas canções angulares que abordam a sobrevivência emocional/sentimental na grande urbe brasileira, contra tudo e contra todos. Talvez Aud nem tenha pensado exatamente nisso ao compor suas músicas e letras, mas o resultado do álbum parece apontar nessa direção, de enxergar o presente, encarar o futuro tendo em mente o caminho que nos fez chegar até aqui. Sendo assim, detalhes simples – mas que são definitivos – como ruas, famílias, amores que vêm e vão, compõem esses elementos constantes na prosa das canções de “Acumulado”. A isso soma-se a estética pop setentista retrô, meio calcada nos tons românticos, com pitadas de anos 1980 e temos um conjunto sonoro bem legal que pode revelar surpresas a cada audição.
“Acumulado” tem produção de Júnior Boca e Dustan Gallas, dois sujeitos que sonorizaram discos de muita gente bacana, de Tatá Aeroplano a Barbara Eugênia e a pegada deles tem como traço principal essa apropriação de uma música brasileira popular meio esquecida e/ou colocada em segundo plano. Nunca é MPB, por exemplo; é muito mais um pop romântico que a intelligentsia adorava meter o malho mas que o tempo ares cult. É um pós-pós-Jovem Guarda, devidamente trazido para 2024, temperado por letras que têm tons mais existenciais do que antes. Tal movimento dá a Felipe um tom de ousadia e coragem, até porque, em alguns momentos, ele se mune de honestidade total e conta histórias e reflexões que só podem ser verdadeiras e totalmente de acordo com o que ele pensa e sente. Se há uma qualidade palpável em “Acumulado” é a honestidade.
O tom das letras é um trunfo ao longo do álbum. Quase sempre, Aud consegue transmitir um ponto de vista absolutamente natural. Há exceções que vão exatamente na direção contrária, como, por exemplo, em “Era O Que Me Entreteu E Me Levou Para Além Do Céu”, que resvala no palavrório que não se encaixa na métrica da composição e derrapa um pouco num intelectualismo vazio. Mas, felizmente, tais momentos estão em esmagadora minoria pelo disco. Até porque, se há um momento absolutamente belo em “Acumulado”, ele está na arrebatadora “Caminhão Passou”, que evoca justamente esse romantismo simples do passado recente, com versos lindos e simples, que evocam uma ingenuidade, como “Coração secou, nada mais nasceu, além da saudade de você e eu”, além da própria figura do caminhão que passa na rua pequena, que a criançada vai atrás, que chama a atenção da vizinhança, que vai assuntar o que acabou de chegar na caçamba enorme e misteriosa. A letra transforma a imagem do caminhão passando num intervalo temporal curtíssimo, numa coisa meio “antes e depois”, coisa linda e singela demais, que é emoldurada por teclados que emulam pianos latinos.
Outros momentos ótimos: “Habemus”, que tem versos como “O farelo da migalha é a falência do estado, a farinha da farofa é o almoço e a janta” e uma pegada mais oitentista, que evoca até algo que poderia ser dos Titãs. “Pés de Bumbo” tem teclados mais expansivos, que dão contorno a melodia que tem ares belchiorianos, “Vem, Vem, Vem”, surge como uma concessão dançante que, me parece, sampleia Kool And The Gang via os islandeses do GusGus. E tem “Saturday Night”, um sambinha underground envenenado e em tom menor, falando sobre imagens familiares que compõem os diferentes lados das pessoas, dos lugares, das idas e vindas.
“Acumulado” é um disco visual e cheio de detalhes expostos. É uma ode à cidade e à vivência que cabe dentro dela ao longo do tempo. É singelo em sua minúcia, minucioso em sua delicadeza. Ouçam e passem adiante.
Ouça primeiro: “Vem Vem Vem, “Caminhão Passou”, “Saturday Night”

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.