Sam Morton revisa e recria o trip hop em disco confessional

 

 

 

 

Sam Morton – Daffodils & Dirt
43′, 12 faixas
(XL)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

O trip hop é uma sonoridade intrinsecamente ligada aos anos 1990. Isso, no entanto, não impede que ela seja revisitada e reapropriada por artistas hoje e tal movimento vem revelando vários artistas e projetos bacanas. Veja, por exemplo, o caso de Samantha Morton. Atriz importante na cena britânica dos anos 2000 para cá, ela se juntou ao dono do selo XL, Richard Russell, e se saiu com este projeto Sam Morton, no qual praticamente conta histórias de sua vida com acompanhamento musical calcado fortemente no trip hop que bandas como Portishead e Massive Attack criaram e difundiram no início dos anos 1990. A vantagem é que o som de Sam Morton é mais interessante e criativo que artistas noventistas que formaram uma cena pós-trip hop, como Sneaker Pimps ou Moloko, que chegaram a ter fama e badalação naqueles tempos. O grande diferencial deste primeiro álbum de Sam Morton, “Daffodils & Dirt”, é o talento interpretativo de Samantha, inteiramente colocado a favor do drama e da esquisitice das histórias – quase sempre autobiográficas – que compõem as letras das canções.

 

Na infância, a cantora transitou por diferentes orfanatos, morando ora com famílias temporárias, ora na rua, com todos os seus pertences em uma única sacola plástica. Em “Daffodils & Dirt”, Morton vai além de simplesmente buscar inspiração em seu passado conturbado. Por vezes, parece revivê-lo de dentro – a música como uma experiência extracorpórea, como possessão. Embora utilize sua voz natural, a sensação é a de que ela habita novamente sua adolescência. De alguma forma, no ato misterioso do cantar, ela se transforma na menina que um dia foi. Tudo isso permeado pelo talento de Russell para criar espaços vazios e profundos. Criado no hip hop dos anos 80, ele já declarou que a palavra “espartano” guia seu processo criativo. Se a cantora é a equilibrista, Russell é o ar, o vazio imenso que nos faz perceber a ousadia e o milagre do equilibrismo. As paisagens sonoras dele, tão tênues e ao mesmo tempo ricas, são o cenário perfeito para a voz delicada e a emoção intensa de Morton.

 

Além do entrosamento complementar de Sam e Russell, temos uma interessante e surpreendente lista de colaboradores: Jack Penate, Laura Groves, Alabaster DePlume e Ali Campbell (o vocalista do UB40). A junção desses talentos cria uma expectativa peculiar, que serve para temperar e anular uma eventual monotonia decorrente dos arranjos e vocalizações. É interessante porque a sonoridade que sai das caixinhas de som não é, essencialmente, o trip hop noventista. Há menos peso nas batidas e bem menos reverências por trilhas sonoras obscuras dos anos 1960/70, como havia, por exemplo, nos dois primeiros álbuns do Portishead. E Sam Morton se mostra uma intérprete totalmente diferente de uma Beth Gibbons, por exemplo. Enquanto esta se mostrava portadora de uma força imensa, improvável, Sam apresenta um binômio estranho e incoerente de vulnerabilidade e coragem, algo bem feminino e interessante. Dá pra dizer que este elemento interpretativo, que ela usa para falar sobre histórias reais, confere um poder inédito em álbuns do gênero. É algo novo.

 

É um universo de beats flutuantes, notas de piano fantasmagóricas, efeitos de eletrônica de baixo orçamento, ruídos de fundo misteriosos, como, por exemplo, o pátio de crianças na impressionante “Purple & Yellow”, cheia de ecos e tudo mais. Este é o tom das faixas de “Daffodils & Dirt”, que compõem um conjunto quase homogêneo de narrativas pessoais, que poderiam estar num desses programas que mostram relatos de pessoas que fazem terapia. É tudo muito bonito e triste. Por exemplo, em “Hunger Hill Rose”, Samantha fala sobre “Smell of piss” (cheiro de mijo) e implora “hug me while I cry” (me abrace enquanto eu choro). Como dissemos, é bem triste mas é, justamente, esse espírito revelador e corajoso que torna a audição possível e até curtível por quem não tem qualquer um desses problemas. “Kaleidoscope” é outro momento alto do álbum, lembrando um pouco a abordagem sônica do Radiohead em “Kid A” e a participação de Ali Campbell, por exemplo, em “Broxtowe Girl” confere à canção um clima dub interessante, ampliado pela menção à banda de Ali, o UB40, na narração da letra. É teatro, é música, é verdade. Funciona.

 

“Daffodils & Dirt” é um disco incomum e surpreendente. Fãs dos anos 1990 irão celebrar o som, novíssimos ouvintes de hoje ressaltarão a importância do tom realista da empreitada. Ouça como quem ouve um livro, uma história. Com ótima música.

 

Ouça primeiro: “Broxtowe Girl”, “Kaleidoscope”, “Purple Yellow”, “Hunger Hill Road”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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