Amor, silêncios e respiração de Dulce Quental

 

 

Dulce Quental – Sob O Signo Do Amor

Gênero – MPB, alternativo

Duração: 38:52 min
Faixa: 11
Produção: Jonas Sá, Pedro Sá
Gravadora: Cafezinho

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

Não é sempre que a gente tem a chance de ouvir um disco de canções inéditas gravado por Dulce Quental. Desde 1984, “Sob O Signo Do Amor” é apenas o sexto que ela lança, deixando de fora desta conta a coletânea de sobras de estúdio e canções gravadas – e não lançadas – nos anos 1990, “Música e Maresia”, de 2016. Destes álbuns, o primeiro deles, “Avião de Combate”, de 1984, foi a estreia dela à frente do grupo Sempre Livre. Sucesso absoluto nas paradas de sucesso e nos programas de auditório, o conjunto feminino emplacou três hits indiscutíveis – “Esse Seu Jeito Sexy de Ser”, “Fui Eu”, “Sou Free”. Mas Dulce não estava a fim deste tipo de sonoridade e foi buscar a carreira solo, estreando com o belíssimo “Délica”, de 1985. Depois vieram “Voz Azul” (1987) e “Dulce Quental” (1988), todos pertencentes a este primeiro ciclo solo, no qual a constante era a busca por uma sonoridade pop que fosse nacional mas que tivesse os olhos e ouvidos no que estava rodando nos toca-discos do mundo. Segundo ela, gente como Sade e Style Council a inspiravam. O sucesso de venda veio na cover de “Human Nature” (sucesso de Michael Jackson) e em “Caleidoscópio”, do parceiro Herbert Vianna, sendo sua a primeira gravação desta canção que receberia a versão paralâmica apenas em 1990. Depois destes primeiros álbuns, Dulce só apareceria em disco no distante ano de 2004, com “Beleza Roubada”, que mantinha a mesma atração pelo pop classudo e elegante de outrora. Dezoito anos depois, estamos aqui com o novo trabalho. Dulce não tem pressa porque percebe o momento certo de dizer o que sente.

 

Quem a conhece sabe que é preciso um investimento emocional e pessoal na criação de uma obra de arte como um álbum musical. Dulce canta o que quer, o que sente, fato que a levou a se exilar na cidade litorânea de Angra dos Reis durante a pandemia, registrando lá, numa casa alugada e isolada, as bases e ideias da maioria das faixas que viriam a formar “Sob O Signo Do Amor”. Durante a pandemia, isolada na casinha, perto do mar, dos habitantes do local, da vida simples de lá e com as antenas ligadas do mundo, ela foi construindo um álbum que soa como uma antítese portátil para a rapidez desenfreada dos nossos dias. Dulce exige do ouvinte de seu novo trabalho, toda a atenção possível. Ela quer que prestemos atenção à sua respiração, às pausas, aos tempos, aos detalhes – e há vários – das canções. Para destacar esses elementos nas composições e dar forma a elas, vieram os irmãos Jonas e Pedro Sá, que assumiram a produção. Jonas é cantor e compositor carioca de talento, já com três álbuns na carreira, enquanto Pedro é guitarrista extraordinário, integrante da banda Cê, de Caetano Veloso, além de já ter participado de vários grupos e ter lançado um álbum solo no ano passado, o bom “Um”. Os dois irmãos, não só deram cara ao disco, como o arremessaram para um futuro alternativo, calmo, contemplativo e lento.

 

É esta câmera lenta que parece tomar conta da paisagem que dá o tom do álbum. Dulce teve a intenção declarada de oferecer motivos ao ouvinte para desacelerar o seu tempo, prestar atenção até nas respirações distintas de cada faixa, convidando a todos para, bem, respirarem com ela. Tal gesto vai além da música, tem algo de cerimonial, de carinhoso, de confessional. As canções, eletrônicas, fluidas, silenciosas, se unem através desta ideia de isolamento geográfico e têm a força de uma tecla “pause” apertada, para que todos nós, cada um a seu jeito, tenhamos como pisar o pé no freio. Quando fazemos isso, a beleza dos arranjos e das próprias canções de “Sob O Signo Do Amor”, saltam aos olhos e ouvindos. A voz de Dulce, tradicionalmente grave, consegue chegar a registros gravíssimos, sem perder a doçura, revelando técnica vocal muito apurada. E as composições têm coesão de sobra para segurar esta ideia de desaceleração proposta por Dulce. Além de referências de MPB – Caetano Veloso, por exemplo – o álbum explora timbres sintéticos, hip hop, referências extra-música como Pasolini e pensadores frances, alemães, escritores americanos. É um álbum que oferece prazer para ouvintes familiarizados com este tipo de interesecção entre áreas de conhecimento e vivência artística.

 

Das onze faixas do álbum, algumas de destacam e assumem a tarefa de representar as tonalidades litorâneas dos arranjos presentes. “A Pele do Amor”, que foi o single lançado há algum tempo, tem levada de guitarras e percussões muito sutis, com destaque para voz e uma letra que acena para a sensualidade explícita – “Sob a sua pele//Me enroscar pelos seus cabelos//Me aninhar entre as suas pernas como uma segunda pele”. Em “Vagalumes Fugidios”, Dulce brinca com a percussividade de instrumentos de harmonia e acha um tango no meio da melodia, junto com um arranjo de cordas feito por Jaques Morelenbaum. O piano de Itamar Assiere também ajuda a achar essa sonoridade. E tem muita modernidade nas influências, que, por exemplo, vão para o lado do hip-hop e do eletrônico mais atual em “Amor Profano”, que tem dinâmica e vida próprias. O fim com “Tudo Vai Passar” tem arranjo que mistura acústico e eletrônico de forma muito sutil, com destaque para o instrumento mais interessante do álbum – a respiração de Dulce, que dita o ritmo e se desvela, sem receio. “Tudo passará, como nós e essa canção”.

 

“Sob O Signo do Amor” já seria raro, uma vez que sua criadora só lança álbuns quando realmente tem algo a dizer ou uma necessidade muito arrebatadora de fazê-lo. Mas, além disso, ele é um disco raro na própria música nacional atual, uma vez que tem tradição, modernidade, arrojo e sintonia de uma forma toda própria e especial. Belezura.

 

Ouça primeiro: “Tudo Vai Passar”, “Vagalumes Fugidios”, “Amor Profano”.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Amor, silêncios e respiração de Dulce Quental

  • 31 de março de 2022 em 09:20
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    Muito obrigado, Tetê. A gente aqui só faz desse jeito! Um beijo!

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  • 31 de março de 2022 em 01:06
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    Uma alegria ler a sua crítica sobre o disco da Dulce Quental. Só uma pessoa culta, sensível e que realmente para o tempo para ouvir pode fazer isso.

    Resposta

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