Chrissie Hynde e seu belo disco de covers de Bob Dylan

 

 

Chrissie Hynde – Standing In The Doorway

Gênero: Folk, rock

Duração: 45 min.
Faixas: 9
Produção: James Walbourne e Tchad Blake
Gravadora: BMG

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

Chrissie Hynde declarou no ano passado que sofreu enorme impacto quando ouviu a canção “Muder Must Foul”, faixa épica que puxou o último álbum de Bob Dylan, “Rough And Rowdy Ways”. Em meio à pandemia, enclausurada e bem entristecida, Chrissie redescobriu a obra de Dylan a partir daquela narrativa imensa, a tal ponto que recrutou James Walbourne, guitarrista atual dos Pretenders, banda da qual ela é o corpo e a alma, e, juntos, escolheram um repertório de canções do mestre. Aos poucos, lançando-as em gotas, eles foram percorrendo um caminho bem peculiar dentro do songbook do compositor, cantor e mito americano. O conjunto de nove interpretações chega agora sob a forma desse belo e discreto “Standing In The Doorway”.

 

O título é tirado de uma canção presente em “Time Out Of Mind”, disco dylanesco de 1997, para muitos, uma ressurreição do cantor após muito tempo com trabalhos frouxos. Esta visão é bem reducionista e desinformada, pois abdica da década de 1980 de Dylan, bem como de seus trabalhos no início dos anos 1990, todos bem respeitáveis e com maravilhas escondidas. Aliás, Chrissie discorda dela, uma vez que, das nova canções que escolheu para coverizar, seis são desses período e dessas, quatro são de “álbuns religiosos” de Dylan, “Shot Of Love” (!981) e “Infidels” (1983). Ou seja, se der pra gente definir o caráter de um artista pelas covers de Bob Dylan que ele escolhe, Chrissie Hynde é tudo menos iniciante e arrivista. Ela escolheu mesmo as canções que devem falar fundo em seu coração, não se importando com o senso comum emburrecido.

 

O álbum começa com uma versão voz/violão para “In The Summertime”, uma das faixas de “Shot Of Love (1981)”, muito bem trabalhada e com os vocais na medida para a letra que, segundo muitos experts, é uma espécie de aviso que Bob estava deixando sua recém-abraçada fé cristã. A letra é sobre o amor de um homem por uma mulher, maior do que seu amor por Deus. Se ele realmente quis dizer isso com a canção, certamente o fez de um jeito muito adequado. Chrissie avança com a clássica “You’re A Big Girl Now”, do demolidor álbum “Blood On the Tracks (1975)”, um dos mais doloridos discos de separação marital já feitos. Talvez ela seja a canção mais clássica de todo o roteiro que Hynde escolheu para percorrer aqui. A faixa-título, como dissemos, presente em “Time Out Of Mind (1997)”, é conta com pianos em vez de violões e o efeito é mais dramático e impressionista/impressionante.

 

Com “Sweetheart Like You”, de (“Infidels” 1983), o disco que marcou sua volta à fé judaica, Chrissie tem interpretação no ponto para que prestemos atenção em detalhes como o diálogo entre piano e violões, deixando a letra – que é interpretada como um conto de amor, um ataque à posição militaris dos Estados Unidos na América Central em 1983 ou uma crítica à Igreja Católica – em segundo plano. “Blind Willie McTell” também é dessa mesma época, mas só foi lançada em 1991, quando veio o primeiro volume das “Bootleg Series”. É uma inequívoca homenagem ao bluesman americano nascido em 1903. Em seguida vem minha interpretação preferida do álbum, para “Love Minus Zero/No Limit” canção bela como a luz do dia, presente em “Bringing It All Back Home (1965)”, o álbum que marcou sua guinada à esquerda, rumo ao rock eletrificado de então. O final tem pássaros cantando ao fundo, uma lindeza total.

 

Com “Don’t Fall Apart On Me Tonight”, outra canção de “Infidels”, Chrissie consegue livrar a nossa mente do original – última faixa daquele disco – permeada de sonoridades típicas dos anos 1980, como baterias eletrônicas, por exemplo. Esta versão é bela e, logo em seguida, “Tomorrow Is A Long Time”, a faixa inédita presente na coletânea “Greatest Hits, vol.2 (1971)” ganha seu lugar. Com um arranjo totalmente folk e evocativo, o registro rouco de Chrissie dá um novo fôlego, abrindo espaço para o fecho com outra canção de “Shot Of Love”, “Every Grain Of Sand”, talvez a mais bela faixa daquele álbum, com uma interpretação dylanesca da Bíblia, dizendo que todo mínimo grão de areia é importante na preservação do equilíbrio.

 

Este disco de Chrissie Hynde não é o tributo definitivo à obra de Bob Dylan e nem essa era sua intenção. O resultado que ele proporciona é uma sensação de que só ouvimos verdades, baseadas na interpretação das letras, na tradução dos arranjos, na elaboração das versões. Se a obra de Dylan é tão vasta e às vezes misteriosa – dois fatos inegáveis – ela também se presta a acolher versões e leituras de outros com gentileza e gosto. Ouça e veja.

 

Ouça primeiro: “Every Grain Of Sand”, “Love Minus Zero/No Limits”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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