“Chega de Mágoa”, a nossa “We Are The World”

 

 

Em 19 de maio de 1985, o Fantástico exibiu o clipe de “Chega de Mágoa”, canção gravada por uma coletividade de artistas brasileiros, sob o nome de Nordeste Já. Mais que o grupo de artistas, “Nordeste Já” era um projeto de ajuda às vítimas da seca naquela região do Brasil. A iniciativa foi feita com moldes nos projetos USA For Africa e Band-Aid, iniciativas americana e inglesa, respectivamente, para arrecadação de fundos visando ajudar populações famintas na África. Se “Do They Know It’s Christmas Time”, do Band-Aid e “We Are The World”, do USA haviam estourado nas paradas, por que não pensar que “Chega de Mágoa” teria um destino parecido?

 

 

Sendo uma iniciativa nascida nos escritórios da Rede Globo, e bem sucedida, Nordeste Já seria rebatizada no ano seguinte como “Criança Esperança”, comemorando o vigésimo aniversário do programa “Os Trapalhões”. De lá pra cá, a emissora mantém a campanha anualmente. Voltando à música. “Chega de Mágoa” foi composta por Gilberto Gil, que fez também parte da letra, com participação de Chico Buarque e Milton Nascimento, além de palpites de Djavan, Fagner e Erasmo Carlos. No fim das contas, assinaram como “criação coletiva”, abrindo mão de royalties e demais créditos.

 

Nelson Motta, em seu livro “Vale tudo – o som e a fúria de Tim Maia”, lembra da passagem: “O Sindicato dos Músicos, que assumiu a coordenação da produção do disco, convocou 155 cantores e instrumentistas para três sessões de gravação em um estúdio na Barra da Tijuca. O maestro Dori Caymmi foi escolhido para escrever o arranjo e reger a orquestra e o coro. Com uma tiragem inicial de 500 mil, o compacto seria vendido em todas as agências da Caixa Econômica, patrocinadora do projeto.”

 

E prossegue: “Sem maiores controvérsias, foram escalados Antonio Carlos Jobim, Milton Nascimento, Rita Lee, Gal Costa, Djavan, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Fagner, as duplas formadas por Elba Ramalho e Gonzaguinha, Caetano Veloso e Simone, Chico Buarque e Fafá de Belém e Roberto e Erasmo Carlos, com Elizeth Cardoso representando a velha guarda e o duo Paula Toller, do Kid Abelha, e Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, a ala jovem. E naturalmente, Tim Maia.”.

 

O clima das gravações e a própria gênese da canção teve as Diretas Já como inspiração máxima. Do nome do projeto ao uso de palavras proferidas por Tancredo Neves (“nós não vamos nos dispersar”) após a derrota da Emenda Dante de Oliveira, que propunha a adoção de eleições diretas para presidente em fins de 1984. E a estrutura de “Chega de Mágoa” foi pensada para acomodar a maioria dos artistas convocados para a gravação. Do início com o piano de Tom Jobim, passando pelo solo de Milton Nascimento, os versos seguintes mostraram uma adesão quase total de artistas brasileiros da época.

 

(MILTON)
Nós não vamos nos dispersar
Juntos é tão bom saber
Que passado o tormento
Será nosso esse chão

 

(DJAVAN)
Água, dona da vida
Ouve essa prece tão comovida

 

(RITA LEE)
Chega
Brinca na fonte
Desce do monte
Vem como amiga

 

(CORO)
Te quero água de beber, um copo d’água
Marola mansa da maré
Mulher amada
Te quero orvalho toda manhã

 

(GAL)
Terra, olha essa terra
Raça valente, gente sofrida

 

(GONZAGUINHA)
Chama,

 

(ELBA)
Tem que ter feira,

 

(GONZAGUINHA)
Tem que ter festa,

 

(GONZAGUINHA E ELBA)
Vamos pra vida

 

(CHICO)
Te quero terra pra plantar,

 

(CHICO E FAFÁ)
Te quero verde

 

(CAETANO)
Te quero casa pra morar,

 

(CAETANO E SIMONE)
Te quero rede

 

(PAULA TOLLER E ROGER)
Depois da chuva o sol da manhã

 

(MARIA BETHÂNIA)
Chega de mágoa,
Chega de tanto penar

 

(CORO)
Canto, o nosso canto,
Joga no vento
Uma semente, gente
Olha essa gente

 

(ELISETE CARDOSO)
Te quero água de beber
Um copo d’água
Marola mansa da maré
Mulher amada

 

(GILBERTO GIL)
Te quero terra pra plantar
Te quero verde
Te quero casa pra morar
Te quero rede

 

(ELISETE CARDOSO)
Depois da chuva o sol da manhã

 

(CORO)
Canto e o nosso canto
Joga no tempo uma semente

 

(CORO)
Gente

 

(ROBERTO CARLOS)
Quero te ver crescer bonita

 

(CORO)
Olha essa gente

 

(ERASMO CARLOS)
Quero te ver crescer feliz

 

(CORO)
Olha essa gente

 

(ROBERTO E ERASMO)
Olha essa terra, olha essa gente

 

(CORO)
Olha essa gente

 

(ROBERTO CARLOS)
Gente pra ser feliz, feliz

 

(CORO COM TIM MAIA)
Te quero água de beber
Um copo d’água
Marola mansa da maré
Mulher amada
Te quero terra pra plantar
Te quero verde
Te quero casa pra morar
Te quero rede
Depois da chuva o sol da manhã

 

( FAGNER )
Chega de mágoa
Chega de tanto penar.

 

Em tempo: não deixem de ver o documentário na Netflix sobre as gravações de “We Are The World”, chamado “A Noite Que Mudou O Pop”. Com histórias ótimas de Lionel Richie (um dos compositores da canção), Humberto Gatica (engenheiro de som veterano, que pilotou a mesa de gravação e, no passado havia feito o mesmo em “Elis e Tom”) e vários participantes da sessão que registrou a canção, em janeiro de 1985. Vale pelas imagens originais, pelo clima no estúdio e, especialmente, pela trava que Bob Dylan enfrentou na hora de gravar sua parte, sendo salvo por Stevie Wonder, que o ajudou a encontrar o tom e o jeito certo de cantar. O documentário poderia recordar que, no passado, Stevie gravara “Blowin’ In The Wind”, de Dylan, o que pode ter facilitado a troca de figurinhas.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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