Banda Desenhada
Quando o intrépido CEL anunciou o projeto deste site, o interpelei sobre um espaço que falassse sobre quadrinhos, essa mídia tão variada quanto massificada, com um vasto e interessantíssimo contingente de produções alternativas. E isso nos traz à nossa Banda Desenhada – sim, é claro que demos um alô para a música no batizado da coluna.
Quero ter aqui considerações sobre roteiros, arte, o tanto de história que conseguirmos colocar. Eventualmente, resenhas e digressões sobre o estado da indústria. Dar o máximo de espaço possível às produções nacionais. Nesta primeira investida, pensei em deixar algo como uma carta de intenções. Acho que não existe, no momento, um gancho mais popular para se abordar as Hqs contemporâneas do que os super-heróis. Além do público sempre fiel das histórias publicadas, hoje esses personagens possuem uma audiência muito maior que a tiragem de suas revistas, graças ao cinema e à televisão.
Na verdade, é difícil encontrar algum momento na história onde os heróis não tenham sido o gênero principal do mercado de gibis. Talvez na grande invasão do ocidente pelos mangás, na década de 1990 e início dos anos 2000. Mas mesmo estes, hoje consolidados mundialmente, muitas vezes recorrem a histórias baseadas nos arquétipos de heroísmo e vilania. Faltam somente os uniformes espalhafatosos.
O que então os quadrinhos super-heróicos têm de relevante hoje, capaz de alimentar um debate contemporâneo e duradouro? Quais aspectos das majors Marvel e DC Comics trazem algum frescor para o gênero, para além da linha de montagem de novas ameças criadas a cada mês de publicação?
Assim como têm ocorrido com outras formas de arte baseadas na palavra e na narrativa, como o cinema e, obviamente, a literatura, os gibis estão vendo emergir no momento uma quantidade significativa de apreciadores que faz uma aproximação superficial com suas histórias. Estão sofrendo de uma perda coletiva e assustadora da nossa capacidade de interpretarmos o que estamos consumindo O que acaba causando alguns enganos de leitura, e assim a natureza de alguns personagens é completamente negada. Isso acabou por jogar luz num tipo de fã que, partindo unicamente da tipo de histórias que consome, parece quase inacreditável que exista. Mas sempre esteve por aí, e agora aproveita o zeitgeist do regurgitamento do autoritarismo no mundo para por sua cabeça acima da água.
Sim, são reais e numerosos, os fãs reacionários de quadrinhos.
Em uma mídia que sempre lidou com a criação e inovação, onde Stan Lee fez uma ode ao valor e à nobreza dos desajustados, parece incongruente que muitos amantes do reacionárismo e da aversão à diversidade estejam por ali, como admiradores. No entanto, os super-heróis são cultuados por um público crescente que os adota como símbolo de força e pujança, ignorando que essas qualidades dos personagens servem a um discurso bem distante do “bandido bom é bandido morto”, para usar um lema popular.
Impressiona que o grosso desses fãs venha do público que conhece com intimidade a trajetória dos heróis, mais até do que aqueles que foram atraídos pelos filmes do gênero lançados na última década. São, por exemplo, fãs do Batman que se colocam a favor da ampliação do porte de arma, mesmo adorando um personagem que tem na aversão às armas de fogo um de seus aspectos essenciais. Também é comum encontrarmos os seguidores dos X-Men que defendem a extinção das políticas públicas afirmativas, das cotas nas universidades e governos, ignorando que seus personagens preferidos foram criados baseados nas lutas dos direitos civis nos EUA e no combate ao racismo.
Além de um problema de compreensão da narrativa – somente isso para explicar anos de histórias lidas sem capturar suas linhas principais – o fã reacionário parece basear sua relação com as sagas super-heróicas em uma espécie de manutenção de um “tempo ideal”. O culto aos valores da infância só faz crescer – digite agora na barra de busca da sua rede social “no meu tempo” para ter uma ideia – como se isso fosse, talvez, cura para os tempos difíceis que estamos passando. Ou para os boletos que martelam constantemente a vida adulta. No retorno aos heróis de sua infância, o fã pode encontrar o conforto de um mundo que sempre reconheceu como seu, e no qual tem seu lugar claramente definido.
Só que é nesse ponto que está a pegadinha. Os super-heróis sempre estiveram na vanguarda, ainda que seu progresso tenha sido lento, de certa forma. Pelo menos desde a década de 1960, com a explosão da Marvel (desculpem tanta menção ao Sr. Lee. Sou DCnauta confesso, mas o cara precisa ser homenageado) que o gênero persegue a novidade e outras formas de dizer o que sempre disse. Existiram altos e baixos, comuns a todas formas de arte, mas mesmo quando as grandes editoras parecem entrar em movimentos retrógrados criativamente, é sempre possível encontrar os cantinhos de inovação nas histórias. Elas estão sempre mudando, e vão mudar.
Não podendo se sustentar nas mesmas narrativas de sempre, o reacionário busca seu gancho nos próprios personagens. Confunde os atos de bondade do Superman com as aspirações do “homem de bem”. Mas a justiça praticada pelo último filho de Krypton vai muito além da manutenção do status quo, como afirmam as leituras simplistas do personagem. Clark Kent é filho da classe trabalhadora do meio-oeste norte-americano. Ele é bom porque escolheu ser, mas batalha constantemente com os limites dos seus poderes quase divinos. Ele não luta pela justiça porque é mais fácil, mas porque entende que é esse caminho que precisa de empenho maior. Luta não para afastar as diferenças, mas para que todos se sintam merecedores da mesma atenção e do mesmo cuidado.
A violência do Justiceiro, estrela de um seriado na Netflix em parceria com a Marvel, é exaltada como a melhor maneira de lidar com os criminosos: matando-os. De preferência, com requintes de crueldade e tortura. A inversão de valores chega ao ponto de policiais e militares nos EUA estarem utilizando a caveira símbolo do personagem como um detalhe em seus uniformes, o que fez seu co-criador, o roteirista Gerry Conway, vir a público dizer que “… é perturbador quando vejo figuras de autoridade se apropriando das imagens do Justiceiro(…) Ele é feito para indicar o colapso moral da autoridade social (…) O anti-herói vigiliante é, fundamentalmente, uma crítica ao sistema judicial, um exemplo de fracasso da sociedade. Então quando policiais colocam as caveiras do Justiceiro em seus carros, ou militares usam patches com isso, eles estão basicamente se aliando com um inimigo do sistema e aceitando a mentalidade de um fora-da-lei. (…) A polícia não deveria usar o simbolo de um criminoso.“
Esse, podemos dizer, distúrbio de compreensão da narrativa se estende por quase toda a indústria mainstream de Hqs hoje, principalmente quando as editoras buscam implementar certas políticas de afirmação das minorias – sendo marketing ou não, a importância de lançar o gibi de um Capitão América negro é brutal. Uma parcela enorme de fãs continua a pedir histórias “como eram antes”, no Brasil é muito comum ler comentários de fãs criticando certos aspectos das histórias como “esquerdismos”. Aspectos que, em graus variados, sempre estiveram lá.
No fundo, embora toda narrativa ficcional seja aberta a interpretações, é inegável que os personagens dos quadrinhos são populares graças à imutabilidade de suas naturezas. Se para alguém hoje esses elementos parecem desconfortáveis e dignos de reprovação, o ruído não está nas histórias. Talvez alguma coisa primordial não tenha sido percebida por algum tempo. Ou, quem sabe, tenha apenas se tornado mais clara.
Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com