Refavela Atemporal

Crédito: Divulgação

Havia um plano sentimental e secreto para que a estreia da seção de resenhas de show da Célula Pop fosse com Refavela 40. Sexta e sábado, dias 25 e 26 de janeiro foram as últimas datas da turnê que celebrou os 40 anos de uma das obras mais instigantes e visionárias da carreira não menos instigante e visionário Gilberto Gil. E o show voltaria ao palco onde começou, no Circo Voador, no Rio. Mesmo assim, este texto tem ares mais duradouros que uma simples resenha. Espero que ele cumpra sua função.

Estive lá na noite de sábado, 26 de janeiro. Fazia tempo que não assistia a um show por motivos de saúde, já totalmente superados. Tinha ideia de que seria uma celebração afetiva e familiar, com Gil e filhos, até netos, exaltando no palco a beleza perene das canções do álbum, generosamente abrindo espaço para convidados e convidadas de vários pontos do país e do mundo. Sabia, ou melhor, intuia, que seria belo e necessário nestes tempos inacreditáveis que estamos vivendo. Funcionaria como uma espécie de unguento contra esta ferida moral e social que carregamos já há algum tempo, potencializada por eventos tristes e inadmissíveis, como o assassinato de Mariele Franco e seu motorista Anderson, pelo exílio político do deputado federal reeleito Jean Wyllys, por conta de ameaças à sua vida, fato celebrado por aquele que está ocupando a presidência do país, como se tudo não passasse de uma brincadeira entre valentões questionáveis num pátio de recreio qualquer. Para píorar a sensação de desalento, a tragédia de Brumadinho, a cidade mineira atingida por mais um rompimento de barragem da Vale privatizada. Tudo apontava para a necessidade premente de alguma forma de luz.

E, caros e caras, Refavela 40 é uma fonte inesgotável de luz.

O show é um tributo ao disco, mas oferece uma lógica comunitária e amorosa entre banda, convidados e público, que parece ter sido natural desde o início. Tanto que a turnê, que resultou em 31 apresentações no Brasil e no exterior, foi agregando pessoas aqui e ali, como se fosse um trio elétrico baiano ideal. Da Itália veio Chiara Civello. De Cabo Verde veio a magnética Mayra Andrade. De Pernambuco veio Sofia Freire, de São Paulo veio Anelis Assumpção, do Espírito Santo – e das gravações originais do disco – veio o superbaixista Rubão Sabino. Do amor fraternal com companheiros de estrada, vieram Moreno Veloso e os filhos de Gil, Bem – que toca guitarra e dirige o show – e Nara, backing vocal desde sempre – e até a neta Flor Gil, filha de Bela Gil, que também faz vocais de apoio com um belo penteado afro. E, de certa forma, todos nós, brasileiros, herdeiros e viventes desta lógica de “um povo chocolate e mel” estamos ali no palco.

Refavela, o disco, foi um marco. É a expressão de Gil sobre o que testemunhou em Lagos, no início de 1977, quando esteve lá para as reuniões e apresentações do Segundo Festival Mundial de Cultura e Artes Negras e Africanas, realizado entre 15 de janeiro a 12 de fevereiro daquele ano. Foi no II Festac que ele conheceu Fela Kuti, Stevie Wonder, vários líderes africanos, artistas, poetas e voltou profundamente afetado por tudo isso, por esta manifestação universal de cultura negra. Era um tempo de afirmação dos países do continente, então com pouco mais de uma década – na média – de independência das metrópoles europeias. Era um tempo de percepção das manifestações culturais como forma de afirmar as identidades nacionais, de celebrar a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, de olhar, como fizeram os antropólogos Paul Gilroy e Stuart Hall, de compreender a diáspora africana.

Gil e sua banda ficaram hospedados em um conjunto habitacional de Lagos, que lembrava bastante os conjuntos habitacionais do Banco Nacional de Habitação – o BNH – um poderoso instrumento de política habitacional do governo brasileiro nos anos 1960/70 em parceria com a Caixa Econômica Federal. Ali, do outro lado do Atlântico, ele percebeu que tais prédios poderiam ser uma nova forma de habitação, uma “refavela”, uma recriação do conceito que já existia nos morros do Rio. A ideia dava continuidade ao que ele vinha fazendo desde que voltara do exílio, alguns anos antes. Seus discos lançados – “Expresso 2222” e “Refazenda” – tinham falado de futuro, de revisar ideias e aprontá-las para o novo tempo, que parecia ter chegado. “Refavela”, o álbum, é uma visão de futuro no presente. Era a chegada de um mundo negro, com uma identidade única – ainda que multifacetado – e, mais importante: integrado. O sujeito que ia nos bailes do Black Rio, por exemplo, tinha semelhanças com o frequentador de festas reggae na Jamaica e com o público das nascentes celebrações no Bronx novaiorquino, que dariam no surgimento do rap. Tudo estava – está – interligado.

O show mostra como isto era verdade há quarenta e dois anos e como continua sendo. É, acima de tudo, uma apresentação em que vemos as interligações entre Brasil, África, Europa, em fios, traços, semelhanças. Tudo está conectado e fazendo sentido, colocado em uma harmonia que parece inquebrantável. É um show inconsciente – ou não – sobre este momento histórico.

Há espaço para todas as canções do álbum original e para “Sitio do Picapau Amarelo”, compacto lançado por Gil no mesmo ano do disco. Os convidados participam com brilho das versões. A inacreditável Maira Freitas, pianista, arranjadora e cantora, filha do sambista Martinho da Vila, abre o show com uma incendiaria releitura de “Mundo Negro” e mostra o quanto o show será democrático. Logo também é dito que a apresentação será dedicada ao deputado Jean Wyllys e à memória da vereadora Mariele Franco. Uma placa de rua com o seu nome é colocada no palco e lá permenecerá até o fim.

Os destaques não param: Sofia Freire em “Era Nova”, Chiara Civello e Maíra Freitas na versão de “Samba do Avião”. Maíra também incendeia “Sandra” que comportou uma citação de “Arrivederci”, de Moreno Veloso com a impressionante Mayra Andrade, cantora de Cabo Verde, que também interpretou “Compasso Pilon”, do grupo Bulimundo, originalmente gravado em 1984. Moreno também faz uma bela versão de “Aqui e Agora’.

Há homenagens e citações de convidados e inspiradores. Moreno Veloso cantando “Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê”, originalmente gravada pelo seu pai Caetano em 1982. Há “Tristeza Não”, de Itamar Assumpção, cantada por sua filha, Anelis, que também sustenta com força uma versão parruda de “Jammin'”, do Bob Marley de 1978. O mitológico cantor e compositor jamaicano também comparece com “Three Little Birds”, levada pelo próprio Gil, já perto do bis. Ainda no terreno do reggae, a banda executa com propriedade “Master Blaster (Jamming)”, de Stevie Wonder, direto de 1980, com destaque para Bruno Di Lullo (baixo), Domenico Lancellotti (bateria), Mateus Aleluia Filho (trompete), Thiagô de Oliveira (saxofone) e Thomas Harres (percussão).

Gil, que surge no palco renovado e saltitante, sorri e participa das recriações com vigor. “Refavela”, a canção, é levada ao violão e ao baixo, tocado por Rubão Sabino, enquanto “Patuscada de Gandhi” tem a presença de Djalma Correia, ambos veteranos, perfeitamente integrados no contexto. O fim vem com versões demolidoras do “Sarará Miolo”, “Three Little Birds”, “Babá Alapalá”, Maracatu Atômico” e, já no bis, de “Sítio…” e “Toda Menina Baiana”, cantada como se não houvesse amanhã pela plateia do Circo, toda acomodada e aninhada nas mãos de Gil.

A sensação pós-show é de entorpecimento. É daquelas experiências que reverberam e não acabam quando a última canção é executada. Suscita reflexão, desperta a imaginação – por exemplo, imagine o efeito de uma apresentação como essa em comunidades carentes… – e nos mostra que, apesar da beleza negra multicor exposta no palco, esta identidade cultural está sob ataque e tudo aquilo que nos encanta ali, enquanto ouvimos as canções, está sendo questionado aqui, agora, por pessoas que não desejam que tanta cor e beleza convivam na sociedade brasileira – e mundial. E precisamos nos posicionar.

Refavela 40, como o disco, é atemporal e necessária.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Refavela Atemporal

  • 14 de fevereiro de 2019 em 14:08
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    Sensacional, CEL!

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