A triste atualidade de “Perfeição”

 

 

A Débora Consiglio, que escreve aqui no site sobre Literatura, veio comentar numa postagem que fiz no Facebook há pouco. Nela eu dizia que, com base no boletim de dados sobre a Covid-19, liberado hoje, seria possível que alcançássemos a inacreditável marca de 100 mil mortos pela pandemia até o fim do dia, o mais tardar amanhã. Além deste triste dado, eu mencionei, ironicamente, que não havia problema: amanhã começava o Campeonato Brasileiro, versão 2020. Ela veio na postagem e citou um verso de “Perfeição”, escrita por Renato Russo em 1993 e lançada como single do álbum “Descobrimento do Brasil”, sexto disco da Legião Urbana.

 

“Vamos celebrar epidemias. É a festa da torcida campeã”.

Este é só um dos vários versos que Renato Russo escreveu para a letra da canção, que surgiu como uma bomba em 1993/94. Era um quase-rap, com bateria eletrônica, efeito de guitarras distorcidas, teclados e um canto-falado que vinha enfileirando um monte de fatos tristemente verídicos da lógica brasileira. É uma realidade que ainda segue plausível, aliás, terrivelmente possível e empírica.

 

Como as interpretações das obras de arte variam com o tempo em que são feitas, já houve gente que achasse que “Perfeição” era sobre os governos petistas, o governo de FHC,  mas nada é mais terrivelmente atual do que vê-la fazendo total sentido em meio ao atual governo, que optou por tratar a situação da Covid-19 como uma contingência, como algo menos importante do que a economia, tudo para depois justificar qualquer índice baixo – e teremos vários – por conta do prejuízo com a doença e não por conta de sua política de desestímulo ao investimento, às pequenas e médias empresas, enfim, ao que ajudaria as pessoas a terem mais emprego e condição de enfrentar crises, em vez de erodir direitos trabalhistas e tudo mais.

 

Por essas e outras, assim como “Haiti”, de Caetano e Gil, “Perfeição”, de Renato Russo, segue como um dos perenes retratos do Brasil. Poderia ser escrita em pleno século 19 que já seria atual.

 

Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação

Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião

Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade

Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos

Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo

Toda hipocrisia e toda afetação
Todo roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã

Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração

Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal

Vamos cantar juntos o Hino Nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada

Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso com festa, velório e caixão

Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção

Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha, que o que vem é perfeição

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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