Você já esteve em uma comunidade?

 

 

Dessas que a gente chamava de “comunidade carente”, termo que se tornou, de certa forma, pejorativo em relação às pessoas e ao lugar?

 

Que no Rio, por conta do relevo, as pessoas chamam de “morro” ou, finalmente, de “favela”?

 

Eu já estive e não me esqueço. Foi em 1993/94, quando eu estudava na Uerj. Me inscrevi num estágio para um setor da Reitoria, que tinha por objetivo realizar pesquisas sobre demandas através de ações junto a órgãos da administração pública. Estive lá por pouco mais de um ano, tempo em que participei de uma pesquisa sobre a satisfação dos pais em relação à qualidade do ensino das escolas municipais do Rio de Janeiro. Para isso, era preciso cobrir todo o território da cidade, da Zona Sul à Zona Oeste, de Acari à Barra da Tijuca, percorrendo, por amostragem, os diferentes espaços da geografia carioca, para identificar, através das escolas públicas municipais, os pais que deveríamos entrevistar.

 

Tive a chance de fazer pesquisas no Jardim Botânico e em Cosmos, extremo da Zona Oeste da cidade. Em Copacabana e nas comunidades do Cerro Corá e Chácara do Céu. E em outras comunidades, Cotia e Cachoeirinha, cuja entrada era margeando a estrada Grajaú-Jacarepaguá, na altura do Lins de Vasconcelos, bairro da Zona Oeste do Rio. Só era possível entrar com a ajuda das Associações de Moradores destes lugares. Fazíamos o contato, agendávamos a chegada da equipe de pesquisa e ganhávamos uma espécie de “visto” para que pudéssemos fazer o nosso trabalho.

 

No Cerro Corá e na Cotia/Cachoerinha, vi homens armados, guarnecendo o local. Mas não era uma ação criminosa, era algo diferente, era como se aquelas pessoas fossem uma espécie de polícia, uma vez que não havia ninguém da força pública presente. Era o que dava pra fazer. Muitos deles nos perguntavam para quê servia a pesquisa, do que se tratava, sem ostentar, mas por curiosidade/interesse genuínos. E sobre as pessoas que responderam os questionários? Quase a sua totalidade era de gente esperançosa no papel da escola na vida de seus filhos e netos. Gente que desejava manter suas crianças estudando com a certeza de que esta atitude lhes daria uma chance no futuro. “Não quero que eles tenham a vida que eu tive” era a frase mais computada como justificativa para crer na escola pública municipal. Para isso, estas pessoas se sacrificavam ao máximo.

 

Foi na Cachoeirinha que paramos na escola municipal da região e almoçamos um delicioso macarrão com molho de salsicha. Na sobremesa, pudim. E as crianças felizes, correndo pelo pátio e professores atenciosos, perguntando sobre a pesquisa.

 

Esta é a imagem que tenho destas pessoas, destes lugares.

 

Toda vez que vejo notícias sobre mortes em regiões como Paraisópolis, São Paulo, lembro desta pesquisa.

 

Fico pensando em como seria a vida do Rio de Janeiro e de toda metrópole brasileira se os governos dessem condições para as crianças estudarem, terem um emprego, viver com dignidade, ter seu acesso à cultura e à diversão assegurados. E que o poder público desse a infraestrutura urbana mínima para estes lugares. Leio no jornal sobre a morte de nove pessoas, de 14 a 28 anos, pisoteadas após a ação da polícia paulista num baile funk. Dizem os policiais que bandidos usaram os frequentadores do baile como escudo. Segundo estes relatos, nunca a polícia falha, já notaram? É sempre o bandido, o mau elemento, o outro, nunca o policial que recebe pouco, vive sob pressão e que não tem qualquer preparo para abordar.

 

A diversão e a cultura não são privilégio dos mais abastados. Todos os dias, em toda parte, o sistema nos diz o contrário. E precisamos lutar para que estas pessoas sejam participantes da sociedade e não integrem uma massa sem rosto, pronta para virar estatística nas planilhas sem alma.

 

Com o momento atual do país, é preciso resistir. O poder público incorporou apenas sua função punitiva/executória, abandonando qualquer traço referente à busca da igualdade de condições para pobres e ricos.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *