A roupa nova de PJ Harvey
Lançado em fevereiro de 1995, To Bring You My Love é o terceiro álbum de PJ Harvey. Uma diferença importante separa esse álbum dos dois primeiros, Dry (1992) e Rid of Me (1993). A banda que acompanhava e quase se confundia com a artista não existia mais. Harvey passou a ser empresariada por Paul McGuinness, cujo cliente mais famoso era a U2.
Composto em 1994, Bring é resultado, portanto, de uma reinvenção. Isso se expressa sobretudo na sonoridade, com mudanças abruptas de uma faixa para outra. Em seu conjunto, as 10 faixas do álbum retomam temas, linguagens e inspirações para chegar num produto singular – e não apenas em relação ao passado e ao futuro do trabalho de Harvey.
Sai de cena a sonoridade mais próxima do grunge. Um coletivo de músicos – vários multi-instrumentistas – cercou Harvey para produzir algo bem mais difícil de rotular. A guitarra não deixou de ser importante, mas já não domina todas as músicas. A voz, essa sim, continua impressionante.
Bring, lançado pela Islands, rendeu para PJ Harvey o reconhecimento como “artista do ano” pela Rolling Stone e outras revistas. O álbum foi indicado para dois Grammys e para o Mercury Prize. “Down by the Water” chegou a ser single número 2 na parada alternativa da Billboard.
Em agosto de 1995, a BBC transmitiu um programa, “Britpop Now”. Apresentado por Damon Albarn, começa com sua banda, a Blur, então no auge da guerra com a Oasis, o que explica a sua ausência. Em meio a atrações hoje pouco lembradas, estão Elastica, Supergrass e Pulp. E PJ Harvey.
Se a aparição é um reconhecimento de sua importância, acaba dando destaque a sua singularidade. Em 1995, não há nada de “britpop” em PJ Harvey.
A reinvenção
To Bring You My Love foi gravado em Londres no Townhouse Tree. Inicialmente construído como um estúdio privado pelo The Who, ele foi comprado pela Virgin Records e encerrado em 1995. PJ foi uma das últimas a utilizá-lo, durante seis semanas entre setembro e outubro de 1994.
O processo de composição ocorreu na sua casa nova, localizada em Dorset, onde ela cresceu. No verão de 1994, praticamente isolada de outras pessoas, cercada de livros, vendo TV e fazendo pequenas esculturas, ela escreveu letras e registrou as versões iniciais em um gravador de quatro canais. Além da guitarra, usou um pequeno teclado.
No estúdio, o principal colaborador de PJ foi John Parish, seu amigo de infância, frontman da Automatic Dlamini (banda na qual Harvey iniciou sua carreira) e parceiro em vários projetos. Desde 1994, Parish compunha as músicas que se tornariam o repertório do primeiro desses projetos, Dance Hall At Louse Point, lançado em 1996.
Parish não apenas tocou em todas as faixas de Bring, como também assumiu a produção junto com Harvey. Para comandar o processo, a artista convocou Flood, que carregava em seu currículo trabalhos com U2, Nine Inch Nails e Nick Cave.
Do círculo de Cave veio outro músico, Mick Harvey, que participou da gravação de duas músicas. Em outras duas, atuou o percussionista Jean-Marc Butty, convidado por Parish. Mais importante ainda foi Joe Gore, guitarrista que já trabalhara com Tom Waits, que colaborou em seis faixas.
Como já foi apontado, a sonoridade de Bring é bem diferente daquela que marca os álbuns anteriores. O convite para Flood tinha a ver com isso. Depois da crueza e claustrofobia forjadas com a ajuda de Steve Albini (o produtor de Rid of Me), as músicas novas precisavam “respirar mais”.
A faixa título, que abre o álbum, até remete a coisas que Harvey havia feito, mas, com exceção de um breve riff, ela não explode. A dinâmica quiet-loud, tão marcante nos trabalhos de antes, está ausente de Bring. Neste, a palheta de instrumentos é mais variada, incluindo arranjos para um quarteto de cordas em três faixas. A guitarra é dividida entre Parish, Gore e PJ, que assume os teclados em todas as músicas.
As músicas sonoramente mais pesadas são “Meet Ze Monsta”, com sua percussão quase industrial e distorções abundantes, e “Long Snake Moan”, que lembra “When the Levee Breaks” da Led Zeppelin. Nelas, as guitarras soam alto.
Bem diferente é caso de “Working for the Man” e “I Think I’m a Mother”, nas quais as guitarras são discretas ou pontuais. Sons graves dominam ambas. O interessante é que não há nelas um contrabaixo (aliás, só presente em uma outra faixa), cujo papel é assumido pelos teclados.
Uma sonoridade fortemente acústica marca “C’mon Billy” e “Send his Love to Me”, embora haja mais do que violões nelas. Elas foram destacadas por singles e videoclipes. Nestes, os cenários remetem a paisagens de um old west, respectivamente um cabaré rococó e um deserto desolador.
Aliás, “Teclo” é uma faixa que cita a música que Ennio Morricone compôs para Os Canhões de São Sebastião (1968), um faroeste que se passa no que já foi território espanhol na América do Norte. O que Harvey consegue fazer não deixa de dialogar com as trilhas de faroeste, mas carrega um estilo todo próprio, voz, guitarra e teclados desenhando uma paisagem ao mesmo tempo calma e perturbadora.
“The Dancer” passou por algumas transformações desde a versão demo. Em seu primeiro registro, Harvey quis dar toques flamencos, uma estética que lhe era cara e que se faz presente na força dos violões das faixas de sonoridade acústica. Na versão de estúdio, acompanhado por uma percussão sincopada, o órgão ganha destaque, lembrando de seu papel no início do álbum, quando em “To Bring You My Love” vai dialogando com a guitarra.
“Down by the Water”, com sua melodia forte e percussão algo latina, é outra música em tons graves que dispensa o baixo. Tornou-se o destaque do álbum, talvez pela divulgação que a MTV conferiu ao videoclipe. De sua filmagem (a cargo de Maria Mochnacz, parceira de longa data) vieram as fotos e as cores para a capa e o encarte.
A própria artista e sua gravadora deram destaque para “Down by the Water”. Além do videoclipe, houve lançamento como single algumas semanas antes do álbum. A canção faz parte do repertório dos shows de PJ Harvey até hoje.
Por falar em singles, as músicas que acompanham as faixas que estão em Bring valem muito a procura. Elas foram registradas nas mesmas sessões de gravação, mas Harvey preferiu ter um álbum enxuto e com sonoridade renovada. A maior parte foi reunida em uma edição limitada lançada em junho de 1995 (The B-Sides, depois reeditada, com muitos acréscimos, em B-Sides, Demos & Rarities, de 2022).
“Harder”, “Long Time Coming” e “One Time Too Many” trazem as marcas da transição entre Rid of Me e Bring. “Lying in the Sun”, “Somebody’s Down, Somebody’s Name” e “Darling Be There” revelam trabalhos mais experimentais ou envenenados, ao passo que “Maniac” tem o mesmo DNA que “Down by the Water”.
Apesar de suas novidades, em Bring, PJ Harvey continua a prestar homenagens a duas referências essenciais de seu trabalho. A primeira é Captain Beefheart. “To Bring You My Love” cita, logo no início de seus versos, a estreia em disco de seu ídolo. “I Think I’m a Mother” é cantada para fazer lembrar “Dropout Boogie”.
As conexões passam por Eric Drew Feldman, tecladista que é incorporado à banda dos shows de Harvey, juntamente com Parish, Gore e Butty. Feldman trabalhara com Captain Beefheart entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80. Colaborará nas gravações de Is This Desire? (1998), o próximo álbum de PJ.
A outra referência é o blues. Considerando que seus ídolos são sobretudo masculinos (John Lee Hooker, Willie Dixon, Jagger-Richards, Led Zeppelin…), a versão que Harvey encarna não deixa de ser uma subversão. Inclusive na parte das letras em que escutamos uma mulher cantar como um bluesman.
P(omba)g(ira) Harvey
As letras são uma dimensão importante do trabalho de PJ Harvey. Já eram e assim continuarão a ser. Em Bring, em comparação com os álbuns anteriores, há recorrência nos temas e nas referências, mas com algumas transformações.
Como sugere o título do álbum, o amor é a sua obsessão, em muitos tons – provações, demonstrações, esperança, desespero – em relações sempre desiguais e instáveis. Embora isso não seja novidade, em Bring as letras distanciam-se de experiências pessoais e ficam mais livres para elaborar ficções.
Uma forma de percorrer as faixas do álbum é notar a pluralidade de personagens que contam essas histórias. Sucedem-se mulheres ora fortes, ora vulneráveis, ora esperançosas, ora desoladas, mães e filhas, feiticeiras e devotas…
Mas é possível também perceber a insistência de algo indicado pelas palavras “trazer” e “levar”, “enviar” e “vir”. Como se a artista estivesse conjurando forças capazes dessas ações. Essas forças podem depender de outros seres (seráficos e diabólicos), mas também podem ser incorporadas por mulheres e homens (na condição de mediadores daqueles seres).
Em “To Bring You My Love”, vemos alguém que atravessou desertos e mares, dormiu com o Diabo e amaldiçoou Deus, para trazer seu amor. Em “Meet Ze Monsta”, a destemida garota pede a um monstro para ser levada a um inferno em que ainda cabe muita gente.
Em “Working for the Man”, aliás, alguém “lá de cima”, uma possível serial killer leva suas vítimas em um carro que não é deste mundo. Já em “C’Mon Billy”, uma pobre mulher implora: “Venha ver seu filho”. Em “Teclo”, alguém humildemente volta a pedir: “envie-me seu amor”.
Mais pedidos em “Long Snake Moan”, vindos agora de uma figura ameaçadora: “traga-me, amante, todo o seu poder”. A mulher que vê (ou faz) a filha se afogar em “Down by the Water” implora para que os peixes a tragam de volta. É para Jesus que vai o clamor de outra mulher abandonada em “Send his Love to Me”. E em “The Dancer” escutamos a devota esperar por uma segunda vinda de seu amante: “Ele veio banhado em luz, esplendor e glória. Não acredito no que o Senhor finalmente me enviou.”
Sim, nas letras de PJ Harvey, convivem o amor mais carnal e a religião mais sublime. As referências bíblicas continuam a dar frutos. Mas na Bíblia de Harvey, Deus e Diabo não estão longe um do outro. Na letra de “Maniac”, lado B do single “C’Mon Billy”, alguém pede um homem que a leve às “alturas de Deus” e a faça “beijar o Diabo na boca”.
Os termos são cristãos, mas a moral que povoa essas letras é outra. Em “Long Snake Moan”, com suas citações à canção quase homônima de Blind Lemon Jefferson, um menestrel do blues, o verso final proclama: “É meu vodu funcionando”. Aliás, outra menção a um standard do blues está em “Down by the Water”, que termina lembrando e adaptando um trecho de “Salty Dog”.
O peso do blues e a referência ao vodu permitem fazer associações das letras de Harvey com a entidade conhecida no Brasil como pomba-gira. Os rituais de umbanda apresentam os espíritos das pombas-giras como prostitutas do passado, muito efetivas sobretudo em demandas amorosas.
Outro ponto que reforça essa possibilidade está no figurino de Harvey durante suas apresentações na turnê de Bring. Sem a guitarra nas mãos, PJ tinha os movimentos livres para performances mais teatrais. As roupas eram excêntricas, compondo com a maquiagem pesada. Estética drag? Segundo a própria artista, “Joan Crawford trabalhada no ácido”. Outra de suas declarações é oportuna: “Gosto de parecer uma periguete e pensar como uma política”. Se notarmos que o termo que traduzi como “periguete” também já foi usado para prostituta, a relação com a pomba-gira volta a fazer sentido.
De qualquer maneira, toda essa montagem cênica se revelou cansativa ao longo da turnê, que ultrapassou a marca dos 120 shows. Um dos pontos altos foi a apresentação no festival de Glastonbury, em junho de 1995. A turnê passou por Europa, Estados Unidos e Japão, mas foi interrompida em dezembro.
O ano de 1996 virá surgir uma outra PJ Harvey, mais sóbria. Um registro dessa época está no videoclipe de “Henry Lee”, sua participação nas Murder Ballads de Nick Cave, com quem ela teve um relacionamento por alguns meses. Em setembro seria lançado o álbum com Parish, que serviu de base para um espetáculo de dança em 1997, sob a condução do coreógrafo Mark Bruce.
A relação com outras artes além da música faz parte da vida de PJ Harvey desde o início de sua trajetória. Em 1996 ela geraria contribuições diretas para dois filmes (The Passion of Darkly Noon e Stella Does Tricks). Em 1998 ocorreria a estreia de Harvey como atriz (O Livro da Vida). Ao longo dos anos, sua carreira se espalhou por outros projetos, como literatura e poesia. Na música, talvez a principal guinada tenha ocorrido com as temáticas sociais inauguradas em Let England Shake (2011). As sonoridades explorariam muitos contrastes, ilustrados pelo contraponto entre Uh Huh Her (2004) e White Chalk (2007). Em retrospecto, pode-se apontar To Bring You My Love como o momento da primeira reinvenção como artista, quando PJ Harvey encontrou, sem abandonar suas obsessões, os caminhos para contar novas histórias.

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).