A estreia de PJ Harvey, 30 anos atrás

 

 

Desde 2020, PJ Harvey vem lançando as versões demo de vários de seus álbuns. Assim ela vai entretendo seus fãs durante a pandemia. Ao mesmo tempo, alonga um currículo que passa não só pela música, mas pela literatura e pelo audiovisual. O primeiro lançamento coube às demos do álbum de estreia, divulgado originalmente há 30 anos. Uma obra prima, em mais de um sentido.

 

Dry foi seguido por Rid of Me, de 1993. Várias razões justificariam um comentário conjunto sobre ambos. O trio de músicos manteve-se o mesmo. Algumas faixas de Rid of Me foram compostas antes da gravação de Dry. As temáticas nas letras também estão em continuidade. A solução foi fazer uma divisão: comentar Dry com um foco nos seres divinos, dando menos atenção às relações humanas. No fundo, as duas coisas estão juntas. Mas tratarei mais das últimas se eu tiver a felicidade de escrever sobre Rid of Me em 2023.

 

Quem é essa garota?

 

Polly Jean Harvey e seus parceiros de banda, o baterista Rob Ellis e o baixista Ian Olliver, começaram a chamar a atenção ao fazerem shows em pequenos clubes de Londres. Uma fita com três músicas chegou, em maio de 1991, aos ouvidos de uma gravadora independente, a Too Pure, o que rendeu ao trio mais shows e o acordo para um álbum.

 

O trio era estranho em dois sentidos. Primeiro, o que tocava não se encaixava no que estava na moda na cena alternativa britânica de 1991: nada de eletrônico, algo que se alastrava no rock; som guitarreiro, mas sem soar como as bandas shoegaze e sem ir na direção que tomaria o britpop.

 

Estranheza também porque o trio não só não era de Londres, como não vinha de nenhuma outra metrópole britânica. Sua base era Yeovil, uma cidade pequena no sudoeste da Inglaterra. Não fica longe de Bristol, berço do triphop, mas mantendo uma atmosfera muito mais interiorana.

 

O encontro de Polly como vocalista e guitarrista com Ellis e Oliver tem a ver com outra banda, a Automatic Dlamini, liderada desde 1983 por alguém destinado a ter um papel importante na trajetória de Harvey: John Parish. Pouco conhecida mas com alguma estrada, a Automatic Dlamini era um coletivo que Polly conheceu quando tinha 18 anos. Ela foi integrada à banda, viajou em turnês e em 1990 participou das gravações de um álbum que afinal não teve lançamento.

 

Polly tocava sax, guitarra e fazia vocal de apoio. Paralelamente, elaborava composições próprias, dividindo-se entre a música e um curso de Artes e Design em Yeovil. Ela havia crescido em uma região rural, com memórias sobre ovelhas e galinhas que preencheriam suas entrevistas.

 

Mas a casa dos pais também servia de pouso para músicos que passavam pela região, o que fez a música tornar-se algo literalmente familiar para Polly. Na discoteca da casa, sempre em alta rotação, a garota se acostumou com sons que foram parte de sua formação: Rolling Stones, Bob Dylan, Captain Beefheart e artistas que eram suas matrizes, ou seja, o blues. Deste gênero, a jovem retira não apenas inspiração sonora, mas a atitude e a intensidade que deseja ver em suas canções.

 

 

Pela TV, Polly tinha contato com referências mais pops, igualmente importantes. Coisas como Blondie, The Police, U2, The Cure. Ela era fã de “Tainted Love”, na versão da Soft Cell. Entre as influências de sons mais alternativos, estavam Tom Waits e Nick Cave.

 

O pessoal da Automatic Dlamini fazia uns experimentos com percussão e se interessava também por música folk irlandesa. Inexplicavelmente, tudo isso confluiu nas composições de Polly, que convenceu dois dos integrantes da banda a acompanhá-la.

 

Talvez a coisa mais parecida com que fazia o trio em 1991 era o grunge na sua vertente mais ligada ao punk. É interessante notar como Seattle esteve na rota de seus shows já na primeira e curta excursão aos Estados Unidos em 1992. A semelhança não tinha a ver com uma influência direta. Era mais um desenvolvimento paralelo que compartilhava algumas fontes, como a Pixies de seus primeiros dois álbuns.

 

Dry foi gravado no final de 1991, quando Polly tinha 22 anos. O lugar foi o Ice House, um estúdio em Yeovil, ao custo de apenas 5mil libras. Foi produzido pela própria banda, na época já modificada com a substituição de Olliver por um baixista chamado Stephen Vaughan. Continha várias pérolas e outras tantas pedradas.

 

Pérolas e pedradas

 

Para se ter uma ideia do som do trio, “Dress” é um bom começo. Afinal, foi o primeiro EP da banda, lançado ainda em outubro de 1991. O vídeo foi realizado por Maria Mochnacz, na época companheira de Parish. Mochnacz desenvolveria uma longa parceria com Harvey, e é dela a arte que ilustra Dry com sua intrigante capa.

 

A música é avassaladora. Após uma sugestiva introdução de guitarra e bateria, o baixo entra junto com a voz. O compasso é incomum, graças ao andamento desencontrado imposto por Ellis. Dançante e desconcertante ao mesmo tempo. Em alguns trechos, ocorre uma “arrumação”, mas mesmo aí a dissonância se mantém por conta de um violino atravessado. Estamos perdidos e maravilhados.

 

A letra é sobre o vestido que serviria para seduzir um homem na pista de dança. Mas nada corre conforme os planos: o vestido é apertado e desajeitado; o rapaz não demonstra atração, algo narrado com ironia. Para fãs da Pixies, impossível não lembrar do vestido mencionado em “Cactus”, faixa de Surfer Rosa. Mas se num caso a roupa funciona para substituir a mulher, na letra de PJ Harvey ela expressa um incômodo, uma magia que fracassa.

 

Retomarei adiante o comentário sobre as letras de Dry. Relacionamentos narrados de um ponto de vista feminino atravessam várias delas, a começar com “Oh My Lover”, a perturbadora faixa de abertura. Metade da força do álbum tem a ver com as letras e a forma de Harvey cantar, com sua voz, melodiosa e potente, indo do agudo ao grave às vezes na mesma canção.

 

A outra metade da força de Dry vem mesmo de sua sonoridade. Diferente de Rid of Me, cuja coesão foi garantida pela produção, no álbum de estreia cada uma das onze faixas tem sua atmosfera. O recente lançamento das versões demo (aliás, elas já haviam acompanhado parte dos exemplares de Dry) permite perceber a diferença que fazem os demais instrumentos ao lado da voz e da guitarra de Polly.

 

“Oh My Lover” é uma balada, mas com variações dramáticas que a tornam pesada e insidiosa. “Plants and Rags”, com dois instrumentistas convidados, é um duo de violão-guitarra e violoncelo, novamente com efeitos dramáticos.

 

“O Stella” e “Sheela-na-Gig” têm guitarras cheias, muito blueseiras. “Victory” tem um baixo vigoroso, com bateria e guitarra trazendo energias máximas. “Joe” é brutal, a mais rápida das músicas de Dry, faiscando sem parar.

 

“Happy and Bleeding”, “Hair”, “Fountain” e “Water” alternam momentos mais limpos e melódicos com explosões de barulho. “Water”, que fecha o álbum, é outro exemplo de compasso incomum, um 5/4 adotado também em “Hair”.

 

Juntas, com suas distintas atmosferas, as onze músicas de Dry formam um conjunto notável, como ficou reconhecido pela crítica. A Rolling Stone colocou PJ Harvey nas listas anuais de melhor compositora e de melhor cantora revelação. O álbum também alcançou algum sucesso de público, chegando ao número 11 na parada inglesa.

 

John Peel, que comandava um antológico programa na rádio BBC, deu uma mão para a divulgação da banda, convidando-a para uma primeira sessão antes mesmo da gravação de Dry. As quatro faixas apresentadas em novembro de 1991 integram a compilação que registra outras visitas de PJ Harvey à BBC.

 

Em shows cada vez mais concorridos ou participando de festivais no verão de 1992 (com destaque para Reading, na mesma edição da consagrada apresentação da Nirvana), o trio impressionava por seu comedimento. Polly primava pela simplicidade: uma única guitarra e apenas roupas pretas, o cabelo preso. Mesmo fazendo muito barulho, permanecia inabalável. Seu corpo coberto contrastava com a foto na contracapa do álbum, que sugeria uma nudez completa.

 

Contrastes abundam no material de Dry: eles estão na sonoridade, estão na forma da banda se apresentar, no contraponto entre exposição e nudez. Eles continuam nas letras, equilibrando confronto e vulnerabilidade, humor e seriedade, humilhação e agressividade.

 

A Bíblia pagã de Polly

 

A temática religiosa é algo que atravessa boa parte das letras de Dry – e mais duas ou três em Rid of Me. Uma fonte é a Bíblia e seus personagens do Antigo e do Novo Testamento. Outras são referências pagãs, algumas mais precisas, outras mais difusas. Às vezes elas se misturam, pois Polly não gosta de ficar em um único lugar.

 

Aliás, ela não se identifica com uma coisa ou outra. Quanto ao cristianismo, ela sequer foi batizada. Durante o ensino médio é que teve aulas de religião e ficou fascinada com algumas coisas. Músicas de Bob Dylan e da Pixies que usam passagens bíblicas eram antecedentes inspiradores.

 

Já o lado pagão tem a ver com sua mãe, uma artesã de pedras, que curtia livros sobre a antiguidade. Aprendeu algumas coisas com o blues. Há nas letras de Polly uma poética do encanto, palavras e coisas encarregadas de seduzir.

 

“Sheela-Na-Gig” é outro dos destaques de Dry. Como “Dress”, ganhou versão em single e um vídeo. Em seu título, a música evoca uma antiguidade celta, pequenas esculturas de mulheres escancarando seus sexos e rindo efusivamente. A letra fala de uma garota que é taxada de exibicionista por um homem. Ela lhe oferece sua “garrafa cheia de encantos”. Ele a recusa e a despreza, não conseguindo simplesmente ignorá-la.

 

“Hair”, por sua vez, imagina um diálogo entre duas personagens bíblicas bem conhecidas. Dalila é a narradora. Sansão apenas lamenta: “Você mentiu na minha cara! Você cortou meu cabelo! Você mentiu na minha cama!”. Quando Dalila decreta, cabelo de Sansão em suas mãos, que “você é meu”, quer dizer que o quer ou que o controla?

 

“O Stella” dirige-se à Virgem Maria, mas de um modo que não é muito ou apenas cristão, parecido com o deslocamento provocado por uma Iemanjá. A devota também sabe dar ordens: “Eu beijo o vestido dela / Envie esses anjos para me cortejar agora”.

 

“Happy and Bleeding” parece ser sobre um defloramento. Mas sua primeira estrofe lembra o que conta a Bíblia sobre Eva, falando de uma fruta que também pode ser o seu sexo. Difícil traduzir: “Fig, fruit, flower myself / inside out for you”.

 

“Joe” pode ser uma conversa entre Cristo e um apóstolo. Ou, como apontam alguns comentários, Maria Madalena se dirigindo a Jesus quando o encontra na casa de Simão: “Chegue perto e eu lavo seus pés / com meu cabelo eu vou enxugá-los”.

 

“Fountain” permite muitas leituras ao falar da visão de um homem que socorre uma mulher desesperada. Mas a menção a “40 dias” nos faz pensar que essa figura bem pode ser o que tentou Jesus no deserto.

 

“Water” alude à caminhada de Cristo sobre as águas. Porém, o verso que pede para “pensar nele com todas as asas de cera derretidas ao mar” evoca Ícaro, personagem de outra mitologia. Notem novamente o contraste: uma música molhada para encerrar um álbum seco.

 

Em cada uma dessas letras, Polly subverte as fontes a que recorre, misturando referências (também visuais, como no vídeo de “Sheela-Na-Gig” com imagens de Jesus) e aproximando o carnal e o divino. As histórias que conta deixam de estar na Bíblia ou em outras antiguidades, servindo para narrar dramas mundanos e pessoais. O inverso também é verdadeiro: tais dramas são transformados em histórias que dialogam com arquétipos e mitologias.

 

E dramas foi o que viveu Polly nos tempos que acompanharam a divulgação de Dry. As diferenças entre a vida em Londres e a que levava no interior, um relacionamento ao mesmo tempo breve e intenso, os dilemas levantados pela exposição nos palcos e na mídia, tudo isso seria processado no álbum seguinte, Rid of Me.

 

Por ora, fiquemos com Dry, sentindo cada detalhe de suas atmosferas e suas letras, tentando achar equilíbrio nos seus contrastes, aceitando todas as suas provocações. E já que as músicas estão cheias de (des)religião, creia-me que o melhor jeito para se ouvir esse álbum é de joelhos.

 

* Este texto é uma homenagem ao Hellradio, programa da Fluminense FM: foi em alguma de suas edições de 1992 que fui apresentado a PJ Harvey.

 

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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