Terceiro disco de Ian Ramil explode em revolução e amor

 

 

 

 

 

Ian Ramil – Tetein
39′, 12 faixas
(Independente)

(5 / 5)

 

 

 

 

Quando terminei a primeira audição de “Tetein”, minha primeira providência foi procurar meu queixo no chão da sala. O terceiro álbum de Ian Ramil é, além do seu mais bem acabado rebento artístico, uma intrincada porrada no sistema, ao mesmo tempo em que é capaz de abrigar afeto e sensibilidade em doses muito além do normal. É um álbum que tem em Nina, a primeira filha do cantor e compositor gaúcho, a sua razão principal de existir, mas não se trata apenas disso. Além de reflexões peculiares e encantadoras sobre a paternidade, Ian também cria outro tipo de canção – mais familiares em relação ao que já fez em seus dois álbuns anteriores (“IAN”, de 2014, e “Derivacivilização”, de 2015, vencedor do Grammy Latino de Melhor Disco de Rock em Português) – verdadeiras bombas atômicas de conteúdo engajado, político-sem-ser-político-partidário e que mostram bem seus pensamentos e posturas diante da vida e do mundo. É como se ele agregasse os ensinamentos colhidos diariamente na paternidade ao que já possui, algo que é a essência da própria vida em evolução. “Tetein” documenta este processo e é, acima de tudo, um trabalho extremamente verdadeiro e único.

 

 

Único porque, não se trata de um álbum “infantil”, pelo contrário. É um trabalho que tem espaço para englobar posturas variáveis – entre ele e sua filha, dependendo da canção ou mesmo do verso – que ressoam de formas diferentes. Pode ser um documento doce sobre um pai que vê sua menina crescer, certamente um privilégio, mas também é o fruto de um cidadão brasileiro indignado com os rumos que o país tomou nos últimos anos e as consequências disso, que vão ressoar em sua vida privada e também na de sua família. Ou seja, Ian documenta um processo cíclico em suas canções e o faz de uma forma natural, quase inevitável, sem que esses dois assuntos se choquem ou se sobreponham, mesmo que seja uma experiência bastante peculiar sair de uma faixa como “Mil Pares” e dar de cara com “O Bichinho”, logo na sequência. Mas o impacto é amansado pelos outros mil atrativos que “Tetein” traz em seu bojo, seja na produção, seja na escolha dos instrumentos e arranjos, bem como na capacidade de suas canções soarem moderníssimas, mesmo ostentando alguns traços bastante tradicionais.

 

 

“Tetein” foi gravado antes da pandemia e, quando Ian se preparava para lançá-lo, no início de 2020, precisou adiar todos os planos. Durante o isolamento social, recluso em casa e vivenciando esta paternidade de forma adoravelmente inevitável, ele também teve tempo para burilar as canções até chegar nos resultados que queria, sem pressa ou pressão. É um trabalho solitário que não evoca a solidão nem deixa espaço para sentimentos ruins. Mesmo quando escrutina os tiques e taques da sociedade doente que emergiu no país nos últimos anos, Ian o faz com brio e bravura, sem se intimidar, aliando ironia, deboche e um ramalhete de letras que contém os melhores resultados que vejo em um álbum em português em muito tempo. A já citada “Mil Pares” é o ápice desta poética, consistindo num desejo manifesto de mudança e revolução, no qual ele diz personificar uma multidão (os mil pares de pernas da letra) que testemunha todas as mudanças necessárias para a sociedade se tornar mais justa. O ritmo é moderno, meio hip hop, meio samba, algo imenso em sua economia de timbres e sons. Só o necessário perpassa sofisticado.

 

 

Outro momento de exorcismo surge em “Macho Rey”, canção que já havia aparecido em “Caco de Vidro”, álbum de 2021 de Duda Brack, na qual Ian enumera as “qualidades e atributos” que o “macho” precisa ter, segundo um consenso burro pré-estabelecido. Ao longo da letra, ele vai derretendo a truculência, a burrice e a violência do homem típico brasileiro e, num não-refrão, expõe o caminho possível: “Seja homem/Não”. Além dela, temos um importante manifesto de conscientização de que somos responsáveis pela nossa história e da nossa sociedade em “O Mundo É O Meu País” (“O mundo é meu país/E toda história é minha história”) e o ápice lírico que surge em “O Bichinho”, cuja letra traz alguns dos achados mais singelos que ouvi recentemente. “O bichinho começou pelo coração/Passarinho pulsando em ultrassom” ou “Bruxinha, onze dezesseis/Rapidinha nos transformou em três”, culminando com “Minha menina não é de ninguém/Dia após dia ela vai entendendo isso também”.

 

 

“Tetein” é um achado. Num meio tão banalizado e comercializado como a indústria musical brasileira, norteada pelo mais raso dos níveis, um álbum como este confirma a regra de que, em algum lugar, de alguma forma, tem gente pensando como a gente. Bravo, Ian.

 

 

Ouça primeiro: “Mil Pares”, “Tetein”, “O Bichinho”, “Macho Rey”, “Minha História É O Meu País”