Siouxsie And The Banshees: Mandinga no Pós-Punk

 

Na capa de Juju, álbum lançado em junho de 1981 pela banda Siouxsie and the Banshees, destaca-se uma máscara. Nada sabemos sobre ela, exceto que é “africana”, parte do acervo do Horniman Museum. O museu, que fica ao sul de Londres, tem suas origens nas coleções de um colecionador britânico, cuja fortuna vinha do comércio de chá. Siouxsie e Severin, vocalista e baixista da banda, ficaram encantados com a máscara e a escolheram para ilustrar a capa de seu álbum.

 

A imagem reforça o título do álbum. “Juju”, uma palavra que era parte do vocabulário hausa (África ocidental), designava um fetiche a que se atribui poderes mágicos. Ela foi se disseminando para se associar a fatos menos localizados, um pouco como aconteceu com “vodu”.

 

 

Nos deparamos com um processo que se repete na história: o fascínio do “civilizado” com o que lhe parece “selvagem” ou “primitivo”. Lembram daquela máscara africana em um famoso quadro de Picasso? Nesse processo, há algo de interesse e valorização reais, há algo que é uma mera apropriação.

 

Nos dois casos, ocorre alguma simplificação que generaliza traços específicos. Um objeto de determinado povo é convertido em “máscara africana”. Por outro lado, é essa simplificação que permite a circulação de referências e abre a possibilidade de novas criações. E, mais uma vez, o africano demonstra sua importância para o europeu.

 

Isso não significa que, por outras razões, o europeu não tenha sido importante para o africano. Foi incorporando influências ocidentais que na Nigéria se desenvolveu o que veio a ser conhecido como “Juju music”. Mas isso já é outra história, que nada tem a ver com a Siouxsie and the Bashees.

 

Assumindo que se trata de uma leitura entre outras possíveis, tomo a “máscara africana” como o mote de meu comentário a Juju, o álbum. Há aí uma pista para entendermos algumas facetas da trajetória da banda. Há aí também uma indicação para localizarmos elementos que se distribuem nas nove músicas do álbum.

 

 

  1. Encantos exóticos

 

A Siouxsie and the Banshees é uma banda com uma longa folha de serviços prestados à música. E nenhuma outra conjuga em seu currículo participações tão especiais: Siouxsie e Severin, o núcleo inicial e duradouro, foram parte da cena punk que se formou em torno da Sex Pistols em 1976; em 1991, lá estavam os dois, com sua banda, na programação do primeiro Lollapalloza nos Estados Unidos.

 

Siouxsie e Severin juntaram o punk a outras inspirações – entre elas, o glam rock e Velvet Underground – para criar algo peculiar, tanto musical quanto performaticamente. Siouxsie encarnou isso de maneira icônica, tornando-se, com sua voz, estilo e ideias, uma figura incontornável da pop music.

 

O primeiro single já assinala um descentramento na cena: “Hong Kong Garden”. Um xilofone acrescentava tons orientais à música baseada na percussão e na guitarra. Na letra e na sonoridade, as referências exóticas marcam presença.

 

Na turnê do segundo álbum, de 1979, desentendimentos levam Siouxsie e Severin a ter que reconstruir a banda. Quem deu uma força foi Robert Smith, com o qual Severin gravaria, anos depois, um álbum. The Glove foi o nome assumido por esse projeto, que também tinha a ver com uma nova participação do guitarrista da The Cure em apresentações da Siouxsie and the Banshees.

 

Mas em 1979 o titular da guitarra veio a ser o evidentemente escocês John McGeoch. McGeoch até então estava na formação de outra banda da cena pós-punk britânica, a Magazine. Sua colaboração com a Siouxsie and the Banshees duraria até 1982, distribuindo-se por três álbuns. Anos depois ele seria recrutado por John Lindon para a PIL.

 

O outro integrante a se juntar à banda em 1979 foi Peter Edward Clarke, mais conhecido como Budgie. Antes, ele era o baterista e o único homem da The Slits, banda com mais três mulheres. No álbum lançado no mesmo ano, Cut, o reggae e o ska são influências dominantes.

 

As conexões com musicalidades d’além-mar aparecem por outro lado ainda. O produtor de Juju, junto com a banda, foi Nigel Gray, que já trabalhara com The Police em seus três primeiros álbuns: Outlandos d’Amour (1978), Reggatta de Blanc (1979) e Zenyatta Mondatta (1980). Como sabemos, Sting e seus parceiros foi um dos trios que mais levaram a sério as interações com sonoridades negras.

 

O encontro de Nigel Gray com a Siouxsie and the Banshees já ocorrera em Kaleidoscope, de 1980, que traz “Happy House” e “Christine” como seus destaques. A maioria das músicas desse álbum é discreta, com a percussão e a guitarra contidas. Isso mudaria bastante em Juju, com sua sonoridade repleta de tambores e cordas que soam como cítaras.

 

Após Juju, a Polydor, gravadora da banda, lançou, ainda em 1981, a primeira coletânea de singles. Essa coletânea foi lançada no Brasil em 1986, acompanhando a passagem da banda por aqui. Juju, no entanto, apesar de seu êxito de crítica e de execução, nunca teve uma edição nacional.

 

Entre 1980 e 1981, Budgie passa a utilizar tom-tons de tamanhos maiores, produzindo sons mais encorpados e onipresentes. Isso certamente contribui para a formação de um interessantíssimo projeto paralelo, que o destaca junto com Siouxsie. A parceria foi além da música, pois eles formaram um casal por vários anos.

 

The Creatures eram apenas eles, voz e percussão, algo bastante raro na música pop. Durante os ensaios das músicas de Juju, Siouxsie e Budgie acharam que uma delas, “But Not Them”, se sairia bem apenas com a bateria como acompanhamento. Algum tempo depois, registraram as cinco faixas do EP Wild Things, também lançado em 1981.

 

The Creatures é um projeto que sobreviveu à própria banda que o gerou. Enquanto que a Siouxsie and the Banshees se dissolveu em 1996, Siouxsie e Budgie seguiram, gravando seu último álbum em 2003. Algo a pontuar na trajetória da The Creatures é a incorporação de musicalidades exóticas, polinésias, japonesas e africanas, entre outras.

 

A busca de conexão com sonoridades africanas é uma marca em Wild Things, com seus muitos tambores, pandeiros, chocalhos, xilofones e outros recursos percussivos. O título do EP destaca a cover da música da The Troggs, branquelos que se puseram a compor um blues envenenado.

 

Em suma, estou a acentuar o fascínio de Siouxsie e seus asseclas por musicalidades exóticas, em especial as “africanas”. Faz sentido que o poeta e reggaeman Linton Kwesi Johnson abrisse alguns de seus shows exatamente na turnê de Juju. O quarteto não estava sozinho nisso, pois se trata de uma espécie de afluente que irriga o pós-punk britânico, sendo central em algumas de suas criações.

 

E faço essa leitura para evitar as simplificações que rotulam Siouxsie and the Banshees como “góticos”. Sim, há elementos que confirmam essa classificação. Mas por que não enfatizar outras coisas? Mais provas: um dos singles que acompanha Juju vem recheado com “Congo Conga”, uma música que The Police poderia ter gravado, e com “Supernatural Thing”, cover do que é originalmente um soul de 1975.

 

 

  1. Música fetiche

 

Para gravar Juju no Surrey Sound Studio, a banda chegou ensaiadíssima. Em menos de duas semanas de março de 1981, os registros foram feitos; outras duas semanas foram dispensadas para a produção. Boa parte das faixas já havia sido testada em shows, algumas desde o ano anterior. Cinco das músicas de Juju estão incluídas em Nocturne, vídeo que eterniza duas apresentações em Londres no ano de 1983.

 

O que escutamos no álbum é definitivamente música de guitarra, embora não haja um único solo. É também música que combina pulsação e atmosfera, graças ao trabalho conjunto de baixo e percussão. Onipresente, a voz de Siouxsie produz efeitos singulares. O quarteto se encarregou de todos os instrumentos.

 

“Spellbound”, que abre Juju, dá o tom para as demais oito faixas. A letra fala em objetos, vozes e risadas que fazem rodar: “você não tem escolha”. Um violão encorpa a música, que destaca a levada tribal de Budgie. Siouxsie nos avisa, obsessivamente: “Nós estamos em transe! Enfeitiçados!”.

 

Em “Into the Light” brilha a guitarra de McGeoch. O flange, pedal que o músico usa em boa parte das composições, se alia a outro recurso para conferir um tom original ao instrumento. A banda vai atrás, num arranjo que dialoga com a voz de Siouxsie, sempre impressionante. A letra coloca lado a lado a luz e a escuridão, novamente evocando algo compulsivo.

 

“Arabian Knights” desfila imagens sedutoras do Oriente para suspeitar que elas escondem mulheres tratadas como “máquinas de bebês”. Ao final da segunda repetição do refrão, Budgie acrescenta o som de tambores a sua bateria para acompanhar o baixo de Severin e ecoar os sussurros de Siouxsie, tudo entrecortado pela guitarra de McGeoch, um dos trechos mais inefáveis da música pop.

 

“Halloween” é composta por imagens fortes, com o refrão citando o bordão “doces ou travessuras” do Dia das Bruxas. A sonoridade é frenética, com a guitarra fazendo assaltos e a voz oscilando entre contar uma história e assustar o ouvinte.

 

“Monitor” destoa em sua ambientação da letra das demais faixas. Trata de câmeras de segurança e de como o que elas mostram passa a fascinar as pessoas, a ponto de virarem meios de entretenimento mais interessantes do que os filmes da TV. A sonoridade é alucinante, sobretudo por conta da guitarra punk-funk de McGeoch.

 

“Night Shift” assume a voz do assassino que ficou conhecido com o Estripador de Yorkshire, que alegava ter uma “missão divina”. Ele matou 13 mulheres entre 1975 e 1980. A voz de Siouxsie é demente – “Eu estou fora de mim com você / No céu e no inferno com você” – enquanto a música oscila entre uma melodia arrastada e outra pulsante.

 

“Sin In My Heart” rende-se ao pecado, melhor apreciado se compartilhado: “Quando você humilha-se aos meus pés”. É a única música em que Siouxsie empunha a guitarra, em acordes simples que cortam a melodia intricada construída por McGeoch. O andamento acelera, puxado pela bateria e o baixo.

 

“Head Cut”, assim como “Spellbound”, homenageia o cinema. Nesse caso, um filme japonês dos anos 60, em que uma máscara tem papel central na trama. A letra também parece evocar o encontro com a máscara que ilustra a capa de Juju. A sonoridade produz uma ambiência misteriosa e os gritos de Siouxsie deixam a gente entender como ela influenciou uma cantora como Bjork.

 

“Voodoo Dolly” é uma miniópera de mais de sete minutos, com diferentes andamentos, que buscam acompanhar a letra que fala dos poderes de uma bonequinha vodu. Ela domina o seu dono, costurando-o a seus medos. Quase uma jam session, essa faixa foi muitas vezes usada para encerrar os shows da banda entre 1980 e 1983.

 

Vê-se que Juju começa e termina com feitiços e encantamentos. Ainda que muitos temas permitam a associação com o gótico – e o conjunto quase concorre com as Murder Ballads de Nick Cave –, outra leitura leva a destacar a insistência em formas variadas de estar à mercê de forças estranhas.

 

Vale todos os riscos.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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