Los Hermanos no ápice – Vinte Anos de “Ventura”
Em primeiro lugar, um esclarecimento: o vigésimo aniversário de “Ventura” foi em maio de 2023 e, não sei por que motivo, não escrevemos nada sobre o acontecido. Tentamos reparar essa lacuna com este texto, fazendo jus ao brilho intenso do terceiro álbum dos Los Hermanos que é um dos últimos grandes discos de uma banda de rock nacional “mainstream” na história. Há muitos predicados em “Ventura” – ótimas canções, ótima produção (novamente a cargo de Kassin, que assinara o surpreendente antecessor, “Bloco do Eu Sozinho” dois anos antes e se tornara o “quinto hermano”), e um inédito equilíbrio alcançado, fruto da mistura das influências da banda até então, especialmente o experimentalismo de “Bloco”, refinado a ponto de revestir várias canções novas com um apelo pop sem perder o fio condutor. Na composição, Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante mostravam grande evolução como cronistas de um cotidiano carioca que beirava um surrealismo triste, o qual, lamentavelmente, parece ter se perdido, não por seu desaparecimento, mas pela aparente incapacidade de ser percebido e relatado por outros.
“Ventura” foi o álbum que deu o “status messiânico” ao grupo, não só por conta de seu conteúdo, mas por apresentar uma banda que se modificara nos últimos anos. A gestação e o lançamento do disco anterior, “Bloco do Eu Sozinho”, trouxe problemas com gravadora, troca de empresário e, como se não bastasse, uma significativa mudança sonora. Sai o hardcore do primeiro trabalho, entra um mosaico existencial com ares sociológicos (in)voluntários, amplificando o mito do Carnaval como metáfora para várias instâncias da vida. Se o público – e a gravadora – esperavam uma nova “Anna Julia”, canção que colocou a banda no mapa da cultura pop nacional logo no primeiro álbum, “Bloco” era uma outra viagem, totalmente diferente. O fato é que os Hermanos lançaram o disco quase sem ajuda da Abril, gravadora que detinha seu passe na época e que ia mal das pernas. Sem divulgação apropriada, sem muita verba para uma distribuição eficaz, a banda entendeu que precisaria levar sua nova versão para todo e qualquer lugar que se interessasse. E assim o fez. É fato histórico e comprovado que bandas excursionando pelos rincões do Brasil ressurgem modificadas, vide os Paralamas do Sucesso e seu “Selvagem?”.
Se o Los Hermanos não ressurgiu com novíssimas ideias estéticas para o sucessor do “Bloco”, por conta de suas idas e vindas pelo país, é certo cravar que o público dos sujeitos aumentou exponencialmente, sem falar que a disponibilidade da banda, somado ao seu escopo lírico, gerou uma identificação imediata com várias audiências, que passaram a acompanhá-los como se Camelo e Amarante – os dois cérebros criativos – fossem portadores de uma verdade existencial maior. Com este cenário, o grupo repetiu o processo criativo do “Bloco” para a gestação de “Ventura”: se exilou num sítio no interior do estado do Rio e lá, por três meses, burilou, compôs, arranjou, testou e fez o diabo a quatro com as canções que fariam parte do vindouro álbum, que quase se chamou “Bonança”. Este processo foi registrado de forma, digamos, abstrata, no documentário “Além Do Que Se Vê”, que foi veiculado na MTV pouco depois do lançamento do disco, em 7 de maio de 2003.
Até ser lançado, “Ventura” passou por um pequeno imprevisto. Ele foi o primeiro álbum da história da música brasileira a ser vazado ilegalmente para a Internet em quase sua totalidade. Treze das quinze faixas vieram a público antes do álbum chegar nas lojas e, antes disso, a gravadora Abril encerrou suas atividades, o que fez o grupo procurar uma substituta em pleno processo final de mixagem, tumultuando o momento. No fim das contas, a BMG foi a responsável por colocar “Ventura” no mundo e, naquele momento, vendeu 100 mil cópias – um número significativamente maior se comparado às 25 mil cópias de “Bloco”. Porém, quando chegou nas lojas e na mídia, o álbum mostrou uma banda totalmente ciente do que queria fazer. Era evidente o amadurecimento dos integrantes, a eficiência do combo sonoro – além de Amarante e Camelo se revezando nas composições, guitarra, baixo e vocais, Bruno Medina (teclados) e Rodrigo Barba (bateria) tinham uma liga sonora invejável. Eles e o naipe de metais, muito bem utilizado nos arranjos das novas canções, reafirmavam a marca musical que Los Hermanos haviam criado e que influenciaria dezenas de bandas e artistas ao longo dos anos 2000 e 2010.
“Ventura” traz algumas das melhores criações do grupo. Liderando este novo lote, “Último Romance” talvez seja o grande momento dos Hermanos, na medida em que subverte o mote maior da banda – a busca pelo amor que pode dar a glória suprema bem como a maior ruína existencial/emocional para quem vai atrás dele. Mas aqui isso está colocado de lado em favor de uma busca maior pela sanidade, pela paz de espírito, a tal ponto do amor cair no colo da pessoa que desistiu de buscá-lo. É algo bem complexo e sutil, que é muito bem resolvido em menos de quatro minutos e meio de uma pop song em midtempo, daquelas que dá pra cantar aos berros diante do Grand Canyon. E ela é só o começo. Ainda estão presentes os adoráveis flertes com o rock alternativo de guitarras americano, em “O Vencedor” e na excelente “Cara Estranho”, que se tornam dois colossos quando executadas ao vivo.
Mas há espaço para a estranheza: “Do Sétimo Andar” é uma pequena obra-prima de surrealismo familiar, algo que é impossível decodificar totalmente, mas que, mesmo assim, pede colo na lista das suas preferidas da banda, da década etc. Tem “Além Do Que Se Vê”, uma homenagem singela de Camelo à sua família, de forma mais ou menos explícita, transformando superação de problemas comuns em um canto agridoce de vitória conquistada a ferro e fogo (“eu sei que o vento que entortou a flor também passou por nosso lar e foi você quem desviou com golpes de pincel, eu sei”). Tem “Deixa o Verão”, uma ode à preguiça criativa diante da inevitabilidade do verão carioca, num arranjo que um skazinho estilizado com toques de Beirut. Tem a jazzística “Samba a Dois”, logo abrindo o álbum, com uma nítida evolução dos Hermanos como músicos; tem “Conversa de Botas Batidas”, uma canção que poderia ser de Ivan Lins, com letra falando sobre um casal de víuvos que se encontra na surdina, à revelia da família e que, veja você, morre abraçado num desabamento que soterra o quarto de hotel no centro do Rio, no qual se viam semanalmente. Só não é mais surrealista porque o fato aconteceu realmente. No fim do álbum, a radioheadica “De Onde Vem A Calma”, mostrando que o naipe de referências da banda ia muito além do que se (ou)via na época.
Não poderia encerrar esse texto sem uma nota pessoal. Em 13 de maio de 2003, numa outra vida, eu fiz uma entrevista com os Hermanos por telefone para a Revista Rock Press, com a qual colaborava na época. Falei por cerca de quarenta minutos com Marcelo Camelo, perguntando tudo o possível sobre “Ventura” e a nova fase da banda. Neste papo, ele me disse algo muito significativo: “a gente quer fazer música que lembre momentos, tipo, ‘música de almoço de domingo’, neste nível de precisão”. Achei curioso porque esta fora a minha impressão ao ouvir a maioria das faixas do álbum – um dejá vu sonoro, algo familiar, inexplicável. Em seguida, já no fim da conversa, ouço a voz de Amarante perguntando: “a gente também estava aqui o tempo todo, mas você só quis falar com ele…”. A gafe total: eu não fui avisado pela assessoria de que teria a banda toda à disposição, pensei se tratar apenas do Marcelo. Enfim, mandei alguma justificativa eficiente o bastante para contornar o mal entendido e desliguei meio aliviado. Em seguida, o telefone toca novamente, atendo pensando ser a assessoria da gravadora por conta de alguma hipotética pendência mas, não.
– Alô, meu filho?
– Oi, mãe, sou eu.
– Filho, a Maria morreu.
Maria era a minha segunda mãe, a pessoa que ajudou a me criar.
É impossível ouvir “Ventura” e não lembrar desse dia. Por isso, tornou-se um álbum difícil de ser revisitado e olha que eu gosto muito dele. Pensando bem, talvez agora eu saiba porque não escrevi nada no dia exato do aniversário dele.
Que seja.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.