A superlativa música de Amaro Freitas
Amaro Freitas – Sankofa
Gênero: Jazz
Duração: 45:13 min.
Faixas: 8
Produção: Amaro Freitas
Gravadora: Far Out
Vamos começar com o clichê: se Amaro Freitas fosse um músico americano, sua obra já seria de alcance mundial e celebrada com muito mais intensidade nos círculos especializados. Mesmo que Amaro já esteja no radar de muita gente por aí, tal verdade ainda faz sentido. Lançando seu terceiro álbum, “Sankofa”, ele padece, não só do problema de sermos periferia cultural do mundo, como, tristemente, de vivermos um momento particularmente tenebroso de nossa história, sequestrados por um governo que tem um projeto contra a cultura nacional. Imaginem, por exemplo, Amaro Freitas tocando suas canções complexas e belas para a cúpula do atual governo, com o ocupante da presidência incluso. O fato é que ainda é preciso contar com a admiração que vem da parcela esclarecida do mundo, neste caso, do selo inglês Far Out, velho fã de música brasileira, já contando em seu catálogo com obras de Azymuth e Marcos Valle, responsável por apresentá-los a ao público, aos músicos e DJs londrinos desde os anos 1990. “Sakofa” também é cria da 78 Rotações e tem o patrocínio da Natura Musical, sendo mais que um novo trabalho, é uma obra conceitual em que lugares negros e pessoas negras são homenageadas/lembradas em forma de música. Só nos resta ouvir.
Uma das primeiras resenha da Célula Pop foi de “Rasif”, o segundo disco de Amaro, lançado no fim de 2018. Ali já era possível ver como este pernambucano tem uma peculiaridade admirável no jeito como toca seu piano. Dono de uma abordagem que não deixa de lado a harmonia que o piano pode criar, Amaro não se furta a usá-lo como instrumento de percussão que também é, mas também intercalando estes momentos mais fortes com passagens absolutamente sensacionais pela sutileza, pela beleza e tamanha capacidade de evocar tonalidades melancólicas. Cada canção que ele e seus músicos – Jean Elton (baixo) e Hugo Medeiros (bateria) – costuram e oferecem ao ouvinte traz um cenário extremamente complexo e múltiplo. Jean e Hugo não podem ser apenas o baixo e a bateria neste panorama, assumindo funções percussivas complexas, harmônicas inesperadas, precisando se desdobrar literalmente a ponto de parecer que há muito mais gente no estúdio do que estes três monstros.
“Sankofa” é a mítica representação acã (povosafricanos da parte ocidental do continente) de olhar para o passado em busca de um futuro melhor e surgiu como conceito a partir de uma blusa que Amaro comprou no Harlem, em Nova York, de um senegalês. Nela um pássado olha para o sentido oposto de seu corpo e, uma vez alertado pelo vendedor de que o desenho era uma representação deste mito, ele resolveu pensar no conceito e ampliá-lo para uma revisita da própria negritude de sua herança e ascendência.
“O símbolo do pássaro místico, que voa de cabeça para trás, nos ensina a possibilidade de voltar às raízes para realizar nosso potencial de avançar. Com este álbum quero trazer a memória de quem somos e homenagear bairros, nomes, personagens, lugares, palavras e símbolos que vêm de nossos antepassados. Eu quero comemorar de onde viemos”, diz Amaro.
Além de ser necessário no momento atual, tal viagem se fez com uma beleza comovente, tamanha a delicadeza dessas escolhas e a força da execução das canções que se originaram delas. Então “Sankofa”, o disco, poderia ser entendido como Amaro olhando para o passado – no qual colaborou com Lenine, Criolo e Milton Nascimento, além de ter lançado outros dois álbuns – e materializando um futuro mais centrado, cujo primeiro produto dessa reflexão é, justamente, este novo disco.
“Trabalhei para tentar entender meus ancestrais, meu lugar, minha história como homem negro. A história dos povos originários, das diversas etnias que ocuparam este território, de como somos plurais. O Brasil não nos disse a verdade sobre o Brasil. A história dos negros antes da escravidão é rica em filosofias antigas. Ao compreender a história e a força de nosso povo, pode-se começar a entender de onde vêm nossos desejos, sonhos e vontades.” – diz Amaro.
O disco tem oito faixas, começando pela que dá nome ao álbum e que, de alguma forma, sintetiza e apresenta sua proposta, preparando o ouvinte para o que virá, com uma melodia bela, que vai se elevando do terreno mais usual e ganhando força com mudanças de andamento, intervenções da bateria e do baixo, leva tudo para outro lugar e tempo. “Baquaqua” lembra da história raramente contada do oeste de Mahommah Gardo Baquaqua, que foi trazido para o Brasil como escravo, mas fugiu para Nova York em 1847, onde aprendeu a ler e escrever. Sua autobiografia foi publicada pelo abolicionista americano Samuel Moore e hoje é o único documento conhecido sobre o comércio de escravos escrito por um ex-escravo brasileiro.
A delicada ‘Vila Bela’ leva o nome de uma área próxima à fronteira com a Bolívia, na região de Mato Grosso, onde a rainha quilombola do século 18, Tereza de Benguela, liderou a comunidade negra e indígena na resistência à escravidão por duas décadas. Já “Nascimento” é uma homenagem calorosa à grande estrela de Minas Gerais, Milton em pessoa, a quem Amaro vê como um talismã da cultura negra brasileira contemporânea. “Ayeye” é o momento mais alegre de “Sankofa”, significa celebração em iorubá e apresenta um piano lindo e vibrante, hi-hats embaralhados e uma batida de baixo complexa, lembrando tanto D’Angelo ou Alicia Keys quanto Bill Evans ou Thelonious Monk. Batizada em homenagem a um touro mítico da região tropical do Maranhão, “Cazumbá” representa a interdependência de todos os seres vivos. Um pulso de jazz rock representa um porto urbano barulhento e, conforme a faixa se desenvolve, é como se o grupo partisse para a tranquilidade do rio da floresta tropical. Inspirado nos sons da natureza, de grilos a pássaros e água corrente, é um chamado para respeitar e proteger a beleza natural deslumbrante do Brasil.
“Sankofa” é isso: um disco complexo, belíssimo, praticamente perfeito em execução e proposta. É algo de que nós, brasileiros, descendentes de negros, que vivemos esta história da mesma forma, precisamos conhecer e exercitar. Parabéns a Amaro e todos os envolvidos.
Ouça primeiro: todo o disco, não dá pra pular nenhuma faixa
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.