Sambô Bloody Sambô
Eu lembro bem. Estava na filial Plaza Shopping das Lojas Americanas, revirando a seção de discos quando, de repente, do nada, do mais absoluto vácuo, surgiu a versão pagodeira de “Sunday Bloody Sunday”. Demorei alguns segundos para me dar conta daquilo e, no meio deste processo, devo ter negado sua existência. Afinal de contas, era uma galera muito animada, cantando em meio a um arranjo alegríssimo, uma das canções mais tristes e significativas do rock dos anos 1980. Não me recordo do processo de assimilação daquilo, mas nunca mais esqueci. Era o Sambô cantando “Sunday Bloody Sunday”.
Outro dia vi na Internet um meme que dizia: “ainda acho que tudo de ruim que está acontecendo ao Brasil é uma espécie de castigo pelo que o Sambô fez”. Eu não duvido. Aquela audição do sucesso do U2 – presente em seu terceiro disco, “War”, de 1983 – despertou em mim a curiosidade suficiente para saber quem era aquela gente animada, provavelmente desconhecedora absoluta do significado da gravação original. É bom lembrar que a canção tem sua origem na lembrança do assassinato de dezenas de pessoas – manifestantes irlandeses – pelo exército britânico, num episódio que ficou conhecido como domingo sangrento. Mas eram eles, o Sambô, grupo de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, cuja carreira teve início em 2006, mas que só “aconteceu” em 2010/11. Como isso aconteceu?
É bom que a gente responsabilize quem merece e, neste caso, a Globo é a responsável por isso. Vejamos. O Sambô existia em sua região por quatro anos, até que, como um milagre às avessas, sua música se tornou conhecida do país inteiro. Como isso aconteceu? Apareceu na Malhação, novela imorrível da emissora, por … três dias consecutivos, animando sequências de festa dentro da historinha. Pouco tempo depois, estavam sonorizando uma daquelas festas orgiásticas do BBB. Menos de um ano passou até que a banda, devidamente contratada pela Som Livre, o tentáculo musical da Globo, tivesse um disco ao vivo infeccioso lançado nacionalmente, além do relançamento do primeiro trabalho, que continha a terrível versão de “Sunday Bloody Sunday”.
Mas não parou por aí. Além de incorporar o grupo na agenda de atrações como Faustão, Ana Maria Braga, Altas Horas e o diabo a quatro, a Globo, colocou outra versão nefasta do grupo: “Rock’n’Roll”, isso, aquela do Led Zeppelin, como tema da chamada da Copa Sulamericana de 2012. Uma olhada nas canções coverizadas pelo Sambô em seus discos é capaz de revirar o estômago do mais tolerante ser:
Suddenly I See (KT Tunstall)
Zóio de Lula (Chorão, Champignon, Thiago Castanho, Marcão, Renato Pelado)
Can’t Buy Me Love (Lennon e McCartney)
Os Cegos do Castelo (Nando Reis) – Part. Esp.: Di Ferrero (Nx Zero)
Pais e Filhos (Renato Russo)
This Love (Adam Levine, Jesse Carmichael)
Aluga-se (Raul Seixas, Cláudio Roberto Andrade de Azevedo)
Smells Like Teen Spirit (Kurt Cobain, Dave Grohl, Krist Novoselic)
Rock das “Aranha (Raul Seixas)
Rock And Roll (Page, Plant)
I Feel Good (I Got You) (James Brown)
(I Can’t Get No) Satisfaction (Jagger e Richards)
Sunday Bloody Sunday (Henson, Edwards)
A gente aqui na Célula Pop é defensor da liberdade de expressão, mas é preciso ter, vejamos, responsabilidade com isso, certo? Fazer versões de canções é tão antigo quanto andar pra frente, e não há nada errado nisso, desde que haja um mínimo, um tico, um traço, um pouquinho, um fiozinho de respeito pelo original. Canções como “Smells Like Teen Spirit” e a já citada “Sunday…” carregam em suas letras um sentido político indissociável. Não dá pra cantá-las como se fossem qualquer canção, mesmo que elas tenham feito sucesso internacional. A culpa não é só do grupo, mas de quem legitimou e lucrou com esta ação, no caso, a Globo, que emprestou sua visibilidade imbatível para que as versões do Sambô tenham saído das telinhas e parado no sistema de som da Americanas do Plaza. Não pode, gente.
Por isso, sim, eu concordo com o meme. Estamos sendo punidos, não só pelo Sambô e sua existência, mas pelo movimento de divulgação desta praga, por conta da mais poderosa rede de TV do país, responsável por difundir tanta coisa que não deveria.
Em tempo: O Sambô … ainda existe. O perigo está sempre à espreita.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.