Obituário com Hurras

 

 

Saber da potência da poesia nos ajuda a entender a dureza das tragédias e a nossa própria. Impede que sejamos cruéis com o nosso cansaço e iludidos pela desumanidade. Ensina que não há fim capaz de absolver quem fez do horror o seu durante pela Terra.

 

O escritor uruguaio Mario Benedetti resumiu brilhantemente no poema “Obituário com Hurras”, de 1963 a potência que emana das nossas vozes, da nossa exaustão, do perdão que a gente não precisar dar a quem nos ofendeu.

 

Bastante divulgado na época da morte de Ronald Reagan, “Obituário” é mais uma riqueza do legado atemporal e necessário de Mario. Os tempos correm, e é nosso dever não deixar que eles se  acelerem tanto a ponto de esquecermos de reservar aos homens cruéis o lugar que eles merecem.

 

Vamos festejar

venham todos

os inocentes

os maltratados

os que gritam de noite

os que sonham de dia

os que sofrem do corpo

os que alojam fantasmas

os que pisam descalços

os que blasfemam e ardem

os pobres congelados

os que gostam de alguém

os que nunca se esquecem

vamos festejar

venham todos

o crápula morreu

se acabou a alma negra

o ladrão

o indecente

se acabou para sempre

hurra

 

que venham todos

vamos festejar

a não dizer

a morte

sempre apaga tudo

tudo purifica

qualquer dia

a morte

não apaga nada

ficam

sempre as cicatrizes

hurra

morreu o cretino

vamos festejar

a não chorar de vício

que chorem seus iguais

e engulam suas lágrimas

se acabou o monstro prócer

se acabou para sempre

vamos festejar

a não ficar mornos

a não crer que este

é um morto qualquer

vamos festejar

a não tornarmos frouxos

a não esquecer que este

é um morto de merda.

 

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

3 thoughts on “Obituário com Hurras

  • 27 de janeiro de 2022 em 00:26
    Permalink

    Mais atual que nunca, esse poema diz tudo o que eu queria dizer. Só que de uma forma muito mais aguda e lírica.

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  • 26 de janeiro de 2022 em 14:52
    Permalink

    Muito bom. Atual e necessário. Não há compaixão para os fascistas.

    Resposta
  • 26 de janeiro de 2022 em 14:17
    Permalink

    Apesar de você
    Amanhã há de ser
    Outro dia
    Você vai ter que ver
    A manhã renascer

    E esbanjar poesia
    Como vai se explicar
    Vendo o céu clarear
    De repente, impunemente
    Como vai abafar
    Nosso coro a cantar
    Na sua frente.

    Fico feliz por o filósofo anal não espalhar mais os absurdos escatológicos dele por aí.

    Resposta

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