Pequena coreografia do adeus: A dor no palco da vida
Quanto sofrimento uma criança pode suportar?
A pergunta salta das primeiras páginas de “Pequena Coreografia do Adeus”, o segundo livro da escritora Aline Bei, lançado pela Companhia das Letras, e a dor que ela implica nos leva a acolher sua protagonista Julia Terra, uma menina filha de um lar destroçado.
Movimentando-se a passos pesados e temorosos pelo amor que já não existe entre seus pais, ela sente na pele os estilhaços da estrutura familiar a cada surra dada pela mãe Vera e na alma o abandono do pai, o pior deles, fantasiado de leveza que esconde a incapacidade de assumir qualquer compromisso com a própria filha.
Julia é toda a linguagem do abandono e da violência e assim se comunica em alguns momentos de desespero, com punhos e socos, como na passagem em que vê o pai com uma de suas muitas namoradas e sem saber como expressar sua mágoa esmurra o nariz de uma amiguinha.
Como se fazer ouvir em um mundo que lhe negava o tempo todo o direito de falar?
Cada trecho de Pequena Coreografia nos desafia a questionar quantas vezes negligenciamos o emocional das nossas crianças. O projeto gráfico do livro acompanha a linguagem que remete à oralidade e quando Julia sente-se diminuída as palavras são escritas em letra minúscula, espremidas como o seu coração.
E o nosso, que dói junto com o dela.
Ainda pequena, depois da sugestão de uma professora e todos os empecilhos criados pela mãe, Julia tem aulas de dança e coreografa seus dias como se pudesse desaparecer ao som da música, ainda que se movimentando pelas cordas do ressentimento e da indiferença dos pais e do deboche das colegas de turma.
Escrito na prosa poética que marcou a escrita da Aline na sua estreia O peso do pássaro morto, Pequena coreografia tem a forma de uma peça teatral que se movimenta no ritmo das batidas do nosso coração. Quando pensamos chegar ao clímax de toda a angústia, Julia muda suas vestes de certa dependência da mãe e aos poucos é como se o palco da sua vida se iluminasse para o grande e esperado solo da redenção.
Ao encontrar no desejo de ser escritora a casa das suas virtudes e essências ela se enche de coragem, começa a trabalhar em um café e aluga um espaço para chamar de seu, fortalecida em seu silêncio pelo convívio com pessoas que são além da família nuclear que a desprezou, mas a que ela com todos os limites dos seus receios escolheu.
Aline estudou Artes Cênicas dos 14 aos 21 anos antes de entrar para a faculdade de Letras e mais uma vez funde com maestria as dores femininas e a potência da sua paixão pela arte, que também mora na vivência tão humana da sua protagonista.
Quando Julia se salva pela escrita, Aline nos salva também.
Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.