Destruindo hypes e dando conselhos sobre música brasileira
Hoje cedo vi alguém compartilhando um artigo no Facebook, intitulado “Clube da Esquina é o ápice da Música” ou algo assim. Era mais um texto que exaltava as – inegáveis – virtudes do álbum duplo, gravado por Milton Nascimento e Lô Borges, em 1972, que também contou com participações de vários músicos mineiros na época. Ainda que seja sempre legal ler textos sobre música, alguns deles são irritantes. Aqui no Brasil existe uma cultura do hype em torno de algumas obras de alguns artistas, fruto evidente de uma má formação cultural por parte de nosso público e mesmo de nossos formadores de opinião. Baseados em conceitos que não sobrevivem a argumentos e encastelados em posições que não dialogam com o real, os críticos musicais sentenciam que este ou aquele álbum de um artista ´é uma obra-prima”. E tal visão é comprada como verdade absoluta por uma parte do público, sem questionamentos, tendendo a perpetuar aquele disco/música como unanimidade. O “Clube” é um caso de trabalho realmente excelente que desfruta de uma condição de obra-prima.
Mas, eu te pergunto: e os outros discos de Milton Nascimento e Lô Borges? Não prestam? Será que existiriam trabalhos destes artistas que poderiam ser melhores que o “Clube”?
Tal lógica do hype se aplica também a gente como Caetano Veloso, Belchior, Novos Baianos e um número incomodamente alto de artistas brasileiros. Ou eles são alvo de um preconceito imbecil ou suas obras são alvo de uma avaliação rápida e rasa demais. Pensando nisso, postei no Twitter um desabafo, que recebeu um número alto de aprovação e considerações.
Baseado nelas e nas outras situações irritantes que me vieram à mente, elaborei esse pequeno rosário de conselhos para quem estiver interessado. Se você quiser, comente com o seu conselho sobre artista, disco ou música que merecem mais atenção.
– Novos Baianos não é só “Acabou Chorare”. Ouça “Caia Na Estrada e Perigas Ver”, “Novos Baianos FC” e outros. Você também pode aproveitar o embalo e cair dentro dos discos solo do Pepeu Gomes e do Moraes Moreira, bem como nos da Baby Consuelo também. Todos têm músicas ótimas até, pelo menos, meados dos anos 1980.
– Tim Maia era uma criatura extremamente carente de atenção, reconhecimento e amor. Não era um doidão apenas. Por isso é bem injusto ouvir o “Tim Maia Racional” como se fosse seu melhor disco. Conheça mais os primeiros trabalhos e o disco que ele lançou em 1976, o mesmo ano do Racional.
– Jorge Ben tem discos praticamente perfeitos entre 1963 e 1976, mas sua obra na Som Livre tem ótimos trabalhos, como “”Banda do Zé Pretinho” e “Bem-Vinda Amizade”. E Jorge não é tropicalista, jovem-guardista ou sambista. Jorge é Jorge, capítulo à parte.
– Falando em Jorge, que tal conhecer o sensacional Bebeto? Paulista e muito mais voltado para o samba-rock, ele tem discos sensacionais entre 1975 e 1982, pelo menos.
– E falando em samba, que tal conhecer um pouco mais do trabalho de João Nogueira e Roberto Ribeiro, indo além dos já queridos Paulinho da Viola e Martinho da Vila?
– Vamos descobrir a obra de João Bosco, por favor? Não dá pra apontar um único momento ruim na carreira do homem. Comece pelas obras fundamentais dele nos anos 1970 e avance pelo requinte instrumental que ele vai desenvolvendo nos anos seguintes. Sério, não tem disco ruim por aqui.
– Milton Nascimento não é apenas o “Clube da Esquina”. Conheçam o “Milagre dos Peixes” (ao vivo e em estúdio) “Minas” e o “Gerais”, discos que vieram entre 1973 e 1976, pelo menos. O álbum de 1970, que tem a canção “Clube da Esquina e “Para Lennon e McCartney” também é lindíssimo, o mesmo serve para o disco de 1969, que tem que “Beco do Mota”. E vale dar uma boa conferida em “Sentinela”, de 1980, outra beleza, ainda que numa escala um pouco menor.
– Lô Borges, parceiro de Milton no “Clube”, não se resume ao “Disco do Tênis”, de 1972. “Via Láctea”, “Nuvem Cigana” e “Sonho Real” são discos mais bem acabados e contém um número impressionante de canções belíssimas. Eu diria que, pelo menos, “Via” e “Nuvem” são melhores que “Tênis”.
– O Terço é bacana e tal, mas o 14 Bis, que veio em seguida, também tem muitos álbuns belíssimos. Os dois primeiros, por exemplo, têm um quociente impressionante de ótimas canções.
– Falando em mineiros, que tal olhar com carinho para o Beto Guedes? Seus cinco primeiros discos são lindos e perfeitos, especialmente o “Amor de Índio” e o “Contos da Lua Vaga”. Vá conhecê-lo, decodificar suas mensagens, suas letras e harmonias belíssimas.
– Secos e Molhados é ótimo, o primeiro disco é maravilhoso, mas você já deu uma boa conferida nos discos que o Ney Matogrosso lançou no fim dos anos 1970, início dos anos 1980? São muito bacanas e valem a conferida, especialmente “Mato Grosso”, de 1982 e o homônimo, que tem “Amor objeto”, de 1981, este com produção de Lincoln Olivetti.
– Belchior não é apenas o verso “ano passado eu morri, este ano eu não morro” ou o disco “Alucinação”, muito menos ‘Como Nossos Pais”. Conheçam pérolas como “Na Hora do Almoço”, “Divina Comédia Humana”, “Paralelas”, “Coração Selvagem” (que não é da Ana Carolina). E discos que ele gravou na Warner, que já mostram a modernização da produção em estúdio ecoando em seus trabalhos, especialmente em “Todos os Sentidos”, de 1980.
– Caetano Veloso não se resume a “Transa”, gente. Pelo amor, vão conhecer a discografia do baiano com mais profundidade. Tudo dele até 1984 é praticamente irrepreensível. E o disco de 1987, homônimo, precisa ser valorizado universalmente. E “Estrangeiro”, de 1989, merece um lugar de destaque em sua discografia.
– Djavan e Ivan Lins são dois excelentes músicos, com carreiras sensacionais. O primeiro costuma ser zoado por suas letras abstratas, mas que, convenhamos, são bem simples de entender, enquanto o segundo é literalmente esquecido por aqui. São duas trajetórias sensacionais. No caso de Djavan, comece por “Alumbramento” e mergulhe em “Luz”, “Lilás” e “Meu Lado”, três exemplos de como a MPB tradicional absorveu bem as mudanças na produção musical dos anos 1980. Para Ivan, pode ir fundo no período que começa com ‘Nos Dias de Hoje” (1979) e vai até “Depois dos Temporais” (1983).
– Rita Lee é a nossa tia mais querida do rock nacional. Mas não só com os Mutantes ou com o Tutti-Frutti. Você já deu uma boa ouvida na produção dela com tonalidades pop, a partir de 1979? Dá pra dizer que tudo o que ela fez entre este ano e 1985 é excelente, sendo que o disco que ela lançou neste ano, “Rita e Roberto”, é sensacional. Valorize esta fase da carreira da Rita em vez de enaltecer álbum de cover de Beatles, este sim, péssimo.
– Tropicália é bem legal, Bossa Nova também, mas você já prestou atenção na Jovem Guarda? A quantidade de discos sensacionais lançados por artistas como Jerry Adriani, Os Incríveis, Wanderlea, Renato e Seus Blue Caps e Golden Boys é impressionante. E você conhece Trio Esperança, Evinha? Vai ouvir, vai.
– Falando em Jovem Guarda, que tal ouvir os outros discos do Erasmo Carlos entre 1970 e 1981, e não apenas o ‘Carlos, Erasmo”? Já prestou atenção no “Sonhos e Memórias, 1942/1971”?
– Sobre Roberto Carlos, claro, a gente sabe que a produção dele nos anos 1960 é indispensável pra entender o rock popular brasileiro, que ele mesmo inventou. E que os álbuns da virada dos anos 1960/70, que mostraram sua maturidade, foram marcos de boa produção e ótimas canções. Mas, que tal parar de comprar a noção de que Roberto “ficou brega” com o avanço dos anos 1970? Pelo menos até 1986, todos os seus discos têm algumas ótimas canções. E muitas delas estão longe do universo romântico que é, sim, seu carro chefe. Tem de plágio (“O Caminhoneiro”) a pequenas explosões como ‘Fera Ferida”, “A Guerra dos Meninos” e “As Baleias”.
– Gal Costa é outra musa da canção brasileira, mas vários de seus discos merecem mais atenção. Ela não é só “Fatal” ou os dois primeiros álbuns, ouça sua produção nos anos 1970 e, dica preciosa, vá até 1985, ano de lançamento do ótimo “Bem Bom”. Os trabalhos de Gal evoluíram graciosamente ao longo dos anos, sendo ponta de lança para timbres modernos em estúdio e sua voz só melhorou no decorrer deste tempo. Comece pelo “Fantasia”, de 1981, a meu ver, o ponto mais alto de sua carreira.
– Elis Regina não gravou apenas “Falso Brilhante”, de 1976. Sua obra é praticamente sem falhas entre 1969 e 1979. Vão conhecer os outros discos, vão. Há vários com o nome “Elis”, que são maravilhosos. Ouçam.
– Ainda sobre cantoras, que tal você descobrir as obras de Clara Nunes, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Diana Pequeno, Joyce, Fátima Guedes? Simone não é só aquela fatídica música de Natal, seus álbuns até meados dos anos 1980 são ótimos, pra não mencionar que também é muito importante dar uma olhada demorada para Nara Leão e Astrud Gilberto? Você está perdendo muito tempo.
– Por favor, sério, por favor mesmo: Alceu Valença não é só “Anunciação” e “La Belle Du Jour”. E também não é só seus discos setentistas, há muita produção maravilhosa de Alceu nos anos 1980, especialmente o álbum “Estação da Luz”, de 1985, que pegou emprestado aquele clima do rock oitentista brasileiro.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Bah!!!, excelente eu mesmo já estigmatizei muitos desses artistas, por puro preconceito ou pelo senso comum dos outros, claro que tem alguns ali que pessoalmente não curto mas respeito, diria que uns 75% citados ali você acertou em cheio.
Pois é, meu caro, a gente tem sempre que despir dos preconceitos e dar novas chances. Tem muita coisa oculta na música nacional que merece redescoberta. Abraço e obrigado.
Não fique pautando o que as pessoas devem ouvir, vc nao é melhor do que ninguém porque conhece a discografia inteira dos artistas. Não é todo mundo que tem a curiosidade que tem um crítico musical.
Sim, Marcos. A função do crítico musical é apresentar essas possibilidades para os leitores. Como a gente já tem mais conhecimento, não é justo deixar de compartilhá-lo com quem gosta de música mas não tem essa mesma curiosidade. E não é pautar, é sugerir. Abraço.