Os Garotin atualizam funk dos bailes black em disco sensacional

 

 

 

 

Os Garotin – Os Garotin de São Gonçalo
38′, 12 faixas
(Mango Musik)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Esqueça o nome do grupo e do disco. A primeira vez que ouvi falar dos Garotin de São Gonçalo logo associei a coisas como Dream Team do Passinho, Bonde das Maravilhas, Quadradinho de Oito e outras nomenclaturas duvidosas do gênero. Engano total de minha parte, tenho que admitir. Os Garotin (eles tiraram o “de São Gonçalo” do nome, mas colocaram no título do primeiro álbum) são um trio de jovens nascidos na enorme cidade próxima a Niterói, na região do Grande Rio. Cupertino, Léo e Anchietx têm um background comum a todos os jovens que surgem nesses lugares: infância pobre, poucas oportunidades, convívio com a violência e o crime organizado. No caso deles – e de muitos outros – a arte resgata e lhes apresenta um mundo novo. Especificamente nestes três casos, a música invadiu suas vidas desde cedo, seja em casa, seja na igreja, seja nas reuniões com amigos. Os três, cada um a seu jeito, foram desenvolvendo sensibilidades e aprendendo a ouvir, a cantar, a entender. Daí o mix das redondezas – gospel, rap, samba, funk – deu-lhes inspiração e referências. Deu no que deu, neste primeiro álbum “Os Garotin de São Gonçalo”, possivelmente uma das coisas mais legais a surgir no pop nacional em muito tempo.

 

E por que é tão legal? Bem, porque, em primeiro lugar, é fruto do desejo dos envolvidos, com zero concessão ao mercado ou ao gosto comum midiático. Leo, Anchietx e Cupertino sabem, ou devem saber, que fazer um álbum com canções calcadas no funk setentista/oitentista, com influências primordiais de Tim Maia, Cassiano, Sandra Sá, Altay Veloso, Conexão Japeri, Claudio Zoli, Farofa Carioca e o pessoal da Trama não é exatamente acertar no som que a galera mais jovem quer ouvir. Mas eles fizeram assim mesmo, devidamente cientes que deveriam atualizar um pouco as coisas. Então enfiaram raps aqui e ali, apimentaram as palavras, os temas e se saíram com um retrato bem fiel do que vivem e veem, não só em São Gonçalo, mas em qualquer periferia empobrecida do país. E tudo soa autêntico, possível, verossímil, a ponto de gravarem uma canção sobre o garotin de São Gonçalo mais conhecido do mundo, Vini Jr, que nasceu no Mutuá, comunidade gonçalense.

 

Os Garotin têm talento, mas também tiveram sorte. Em suas andanças e apresentações informais do início da carreira, toparam com pessoas como Seu Jorge, Paula Lavigne e Caetano Veloso, que deram aconselhamento, força e espaço para que eles aparecessem. Com Caê gravaram um single no início do ano, “Nossa Resenha”, presente num dos vários EPs que foram disponibilizando nos serviços de streaming. Sendo assim, quando entraram em estúdio para gravar o primeiro álbum, já eram cascudos o bastante, com canções testadas em cantorias pelo Rio e periferia. Basta vê-los ao vivo nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio há cerca de nove meses, cantando sem playback e secundados apenas pelo violão de Cupertino. É tudo de verdade. Em estúdio, devidamente produzidos e acompanhados por Julio Raposo, que tocou vários instrumentos e assinou os arranjos, o trio encontrou uma forma convincente de dar seu recado e o resultado os coloca na linha natural evolutiva de suas influências, mencionadas aí em cima.

 

Os assuntos tratados nas faixas do disco dão cores e formas a este cotidiano vivenciado por eles até aqui. Amor, sobrevivência, opinião e consciência social concorrem em harmonia e os arranjos de Julio Raposo conseguem inserir tudo em molduras sonoras à altura. Há momentos sensacionais como “Violão Amarelo”, em que o instrumento que dá título à canção é cobiçado por muito tempo até que finalmente é adquirido, no centro de São Gonçalo. Tem canções de amor com o tom exato de safadeza como “Queda Livre” e “Calor do Momento”, na qual o sujeito não acredita que a menina mais linda do mundo está, sim, dando mole. Tem a ótima “Em Nome da Paz”, em que ouvimos o verso “O genocida no comando não matou a nossa essência” e saudações a Marielle Franco num verdadeiro canto que pode se estender a muita gente. Tem a marota “Pique Anitta”, mais uma canção de admiração e amor leve e versinhos como “Cê passa desse jeito, toda sensual, depois fica falando que não faz por mal”. Em “Pouco a Pouco” o tom já vai mais para uma MPB afunkalhada que surgiu nos anos 1970 e “Vini Jr” honra a tradição jorgebeniana de falar de futebol. “Quem diria que Vini Jr chegaria um dia, quem diria que esse dia chegaria um dia, quem diria que São Gonçalo venceria”.

 

Se tudo der certo, os Garotin chegaram pra ficar. Ainda deslumbrados com a rápida ascensão no cenário nacional, com shows marcados para vários lugares, os três ainda estão entendendo o que está acontecendo. Que tenham tino e sangue frio e sigam leves como neste primeiro disco. E obrigado ao meu amigo-irmão Leo Salomão por me apresentar esses sujeitos. Direto para as listas de melhores de 2024.

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Os Garotin atualizam funk dos bailes black em disco sensacional

  • 7 de junho de 2024 em 08:14
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    Bacana os Garotin, excelente indicação.

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  • 5 de junho de 2024 em 13:49
    Permalink

    Eu ouvi e gostei também. Obrigado CEL. Obrigado Célulapop.
    Mas duvido que sejam de songamonga, mesmo. Aqui não tem nada que preste!!!

    Resposta

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