Os quarenta anos de “Born In The USA”
Quem estava vivo no Brasil de 1984/85 se lembra de ver Bruce Springsteen pela primeira vez na televisão. Até então um desconhecido por essas praias, o Boss lançara um novo álbum e aumentava o alcance de sua obra, para rincões ainda não conquistados, entre eles, o nosso adorável brasilzão das Diretas Já sendo recusadas pelo Congresso Nacional. Havia três caminhos para conhecer Bruce: os clipes de “Dancing In The Dark” e “Born In The USA” ou sua aparição em “We Are The World”, todas disponíveis nas mídias da época num espaço de seis meses. Acho que a minha estreia foi através da dancinha do nosso herói com a versão pós-adolescente da atriz Courtney Cox em “Dancing In The Dark”, com aquela celebração que a canção sugere, executada pela inseparável E Street Band ainda completona, com Danny Federici no órgão e o chapa Clarence Clemmons no saxofone. Ainda que as pessoas lembrem e/ou saibam da importância de “Born In The USA”, o disco, e que ele tenha vendido mais de cem mil cópias no Brasil à época, este é um trabalho que ainda divide opiniões entre o público comum. Quem é fã da obra de Bruce Springsteen sabe muito bem seu significado e conhece sua gênese, mas há uma imensa multidão silenciosa que pode entender exatamente o contrário.
Lembro de um vídeo em que o ex-ocupante da presidência do Brasil, ainda em campanha, aparecia batendo continência para a bandeira americana num evento brega ocorrido na Flórida. Ao fundo, o playback de “Born In The USA”, a canção e o clima de solenindade cafona dando o tom. Claro, era um evento de brasileiros que jamais devem ter frequentado uma aula bem dada num curso qualquer de inglês. Digo isso porque, apesar do título e da postura de Bruce no clipe da canção, trata-se de uma crítica violenta ao governo do ex-presidente ronald reagan, que governava os Estados Unidos quando o álbum foi lançado. Um dos bastiões do neoliberalismo, a administração reagan foi notabilizada pelo encolhimento estatal, abertura completa ao mercado de especulação de Wall Street e pelo derretimento de salvaguardas sociais existentes no país – algo semelhante ao que ocorreu com a primeira-ministra inglesa, margaret thatcher – e, entre elas estavam medidas de assistência aos ex-veteranos da Guerra do Vietnã. A canção de Bruce tem o ponto de vista de um desses ex-combatentes, que voltou do front com a vida destroçada e, sem condições de arrumar emprego digno, sobrevive às custas da boa vontade alheia. É bom lembrar que, por mais que critiquemos a presença americana em outros países, especialmente os mais distantes de seu território, quem foi lá lutar pela terra do tio sam, na maioria das vezes, o fez por conta de pressões sociais e desprivilégio.
“Born In The USA”, a canção, foi originalmente composta com o título de “Vietnam”. Ela fazia parte de uma fornada de gravações que Bruce registrou em casa, entre 1981 e 1983, sendo que algumas delas entraram direto em “Nebraska”, seu disco acústico de 1982. Bruce se sensibilizara com a leitura do livro “Nascido a 4 de Julho”, escrito pelo ex-combatente e ativista anti-guerra Ron Kovic. Ainda que tenha um trabalho totalmente identificado com o americano médio, pertencente à classe trabalhadora e de essência democrática, Bruce ainda não lançara algo tão político quando a faixa-título de seu sétimo álbum. Com o clipe, no qual brandia a guitarra como se fosse uma arma e vestido com jeans e faixa na cabeça, o Boss defendia o respeito a este mesmo americano médio com o qual sempre estivera identificado e que, via de regra, fora combater em guerras passadas. Com o refrão usado como se fosse uma bravata do orgulho nacionalista e anti-comunista do país, ele bateu de frente na versão vigente de Estados Unidos e procurou valorizar os elementos de uma americanidade, digamos, mais conciliadora. Na verdade, a política dos Estados Unidos é muito distinta dentro de suas fronteiras, com democratas e republicanos se alternando no poder mas, via de regra, é bem uniforme em questões no estrangeiro. Basta lembrar que John Kennedy, o símbolo máximo dos democratas de lá, foi o presidente que apoiou o golpe de estado no Brasil de 1964, sendo o presidente que enviou tropas para o Vietnã pela primeira vez e o responsável pelo bloqueio a Cuba, em 1961.
Justo por isso, procuraremos focar no aspecto musical do disco, que se sustenta longe dos símbolos políticos escolhidos por Bruce, a saber, além do título e da canção “Born In The USA”, a capa, com a foto do bumbum de Bruce contendo um boné de beiseball no bolso da calça e as listras da bandeira americana, tirada pela fotógrafa Anne Leibovitz. Com o marketing centrado na figura do Boss como um americano simples e representante de seu público, logo, chancelado por ele, as canções do disco foram galgando posições nas paradas de sucesso. “Dancing In The Dark”, que já mencionamos acima, foi o grande hit do álbum, encomenda pessoal do produtor Jon Landau a Bruce, sob o argumento de que era necessário contar com, pelo menos, um “hit certo” em meio às faixas do álbum. Realmente, a melodia composta pelo Boss, devidamente casada à letra, deu origem a um raro exemplar de pop perfeito com uma mensagem construtiva de afirmação pessoal e aceitação de ser como se é. O clipe, no qual Bruce e a E Street Band se apresentam num show e a fã, vivida por Courtney Cox, é alçada da plateia pelo próprio Bruce para uma dancinha fofa com ele, é mais um exemplo de como é importante que as fronteiras entre público e palco sejam borradas. Até hoje, ele procura levar pessoas para o palco na hora da canção e passa a certeza de que são todos iguais em seus concertos.
Outros dois hits do disco foram “Glory Days” e “I’m On Fire”. A primeira, um rockão americano sobre um personagem fictício que jogara beiseball nos tempos de escola, usado como lembrança de dias de glória, em que todos eram amigos, bebiam juntos, celebravam a juventude e tal. Ainda que ufanista, a letra é ótima e reforça o caráter de contador de histórias de Bruce, ampliado pelo ótimo clipe em que ele e sua banda se misturam aos frequentadores de um bar no qual se apresentam em meio a lembranças da infância. A segunda, mais lenta, é uma das canções mais bacanas do Boss, encarada por muitos como um tributo às gravações mais lentinhas de Elvis Presley, algo que, peço licença, discordo. É mais um feito de estúdio da banda e de próprio Bruce, capazes de baixar o volume de seus instrumentos e voz em favor de um climão que se ergue pelos teclados e bateria de aro, com Bruce cantando em tom grave, mas totalmente devastado pelo desejo e pelo amor.
Com o passar do tempo, todas as doze faixas de “Born In The USA” se tornaram canções importantes para a carreira de Bruce, sendo várias delas executadas em shows em momentos especiais. Em “I’m Going Down”, por exemplo, o Boss procura animar alguém na plateia que esteja se sentindo miserável, mostrando que nada é como um dia após o outro, sempre dentro da lógica de que todos são iguais em seus shows. Ele mesmo costuma lembrar dos foras que levou de namoradas do passado, dizendo que, “agora elas estão arrependidas”. Funciona. Em “Bobby Jean”, minha preferida pessoal do disco, ele conta uma história de amizade perdida no tempo, dizendo que sente saudade de um amigo que nunca mais viu e, ao lembrar do passado, cita vários momentos em que os dois eram inseparáveis. Ora, para quem tem amigos, mesmo poucos, o tiro no peito é certo. O público ajuda bastante, fazendo coreografias de adeus com as mãos. E tem detalhes interessantes, como o fato de “Cover Me” ter sido composta tendo Donna Summer em mente, mas a canção jamais chegou até ela. Na verdade, “Born In The USA” é um disco pra lá de regular, não há canção ruim nele.
Quando esteve aqui em 2013, Bruce brindou os fãs do Rock In Rio com uma apresentação na qual executou todo o álbum ao vivo. Quem estava lá, no dia 21 de setembro, sabe muito bem o que viu. Copio abaixo a crítica que escrevi para o Monkeybuzz sobre a presença do Boss naquele palco.
“Bruce Springsteen subiu ao Palco Mundo com 20 minutos de atraso disposto a oferecer-se ao público do festival. Quem conhece a carreira do Boss e acompanha seu estilo ao vivo, sabe que o homem não brinca neste departamento. À frente de uma encarnação poderosíssima da E Street Band, com trio de backing vocals, naipe de metais, percussionista, além das presenças de Little Steven Van Zandt, Nils Lofgren (guitarras), Gary Tallent (baixo), Max Weinberg (bateria) e Roy Bittan (piano), todos presentes desde o início da década de 1970, Bruce iniciou os trabalhos com uma comovente homenagem a Raul Seixas, a exemplo do que fizera em São Paulo. O falecido roqueiro baiano jamais recebeu homenagem tão sincera, apesar do festival conter entre suas atrações, um tributo picareta e lamentável, urdido por gente como Detonautas, Zeca Baleiro e congêneres. Após a versão encorpada de Sociedade Alternativa, Bruce engatou Badlands, de seu belo disco Darkness On The Edge Of Town (1978) e ofereceu ao público a chance de caminhar com ele por uma estrada de estilos da música Americana. Country, Gospel, Soul, Rock, tudo está no som da E Street Band, que ainda apresenta pitadas de produção de Phil Spector nos anos 60 (o chamado wall of sound), pianos épicos e arranjos que privilegiam saxofone e a voz do Chefe. Aliás, poucos comentam, mas Bruce é um dos grandes cantores do rock em atividade e, ao longo de cerca de 160 minutos, não economizou suas cordas vocais.
O público percebe que está diante de algo anormalmente intenso quando as tinturas gospel de Spirit In The Night tomam conta do enorme recinto. Após Hungry Heart, um de seus maiores hits radiofônicos (do disco The River, de 1980), Bruce anuncia em português que vai presentear o público com uma apresentação integral de seu disco Born In The USA (1984), seu maior sucesso internacional, inclusive aqui, onde foi confundido com um compêndio de canções patriotas e americanóides, quando, na verdade, trata-se de uma vigorosa porrada na hipocrisia da Era Reagan, um dos responsáveis pelo triunfo da lógica mercantil que feriu de morte um monte de coisas que gostamos, inclusive o próprio rock’n’roll. Vieram, além da marcial faixa título, canções emocionantes como I’m On Fire, I’m Going Down, Glory Days e dois momentos para a memória: Bobby Jean, que é uma das mais belas canções sobre amizade e saudade de si mesmo e Dancing In The Dark, o maior hit pop do Chefão, em cujo clipe ele aparece dançando com Courtney Cox ainda adolescente. Bruce desce até a plateia – algo que ele faz com frequência ao longo do show – e puxa uma galera para o subir ao palco e dançar com ele. As pessoas – quatro meninas e um rapaz – não conseguem conter a felicidade, enquanto Bruce se deixa beijar, fotografar e afofar.
O show continua como se hoje fosse o último dia do planeta e o pungente The Rising (2002) é lembrado pela faixa título e por Waiting On A Sunny Day, na qual, mais uma vez na plateia, Bruce oferece o microfone para um garoto cantar o refrão e emociona pela humildade e felicidade evidentes. Mais momentos emocionantes surgem na visita ao clássico terceiro disco da carreira, Born To Run (1975), em suas três canções mais belas Thunder Road, a faixa título e Tenth Avenue Freeze Out, que narra a formação da E Street Band, mencionando o encontro entre Bruce e Clarence Clemons, o saxofonista grandalhão, falecido em 2009. O sobrinho deste, Jake, ocupa seu lugar com o mesmo vigor do tio e o telão exibe imagens da dupla ao longo do tempo. A emoção continua quando também aparecem takes com o organista e tecladista Dan Federici, morto pelo câncer em 2008. Além das canções autorais, Bruce engata uma versão incendiária de Twist And Shout misturada com La Bamba, que faz o público gastar seus últimos momentos de energia, num bailão imortal. No bis, o Chefe retorna ao palco apenas com violão e gaita para uma versão solene de This Hard Land.
Agora, peço licença ao leitor e aos amigos do site para colocar aqui a minha impressão de fã e espectador de primeira viagem de shows do Chefe. Tenho DVD’s do cara, a discografia completa mas, acredite, seu batismo de fogo em relação a Bruce Springsteen vem após um show. E, chegando em casa na manhã do domingo, escrevi as palavras abaixo em meu perfil do Facebook. Elas não são jornalísticas ou isentas, são totalmente apaixonadas, para as quais peço o devido desconto, uma vez que a parcialidade é enorme.
“Dormi pouco, a excitação ainda é imensa. Tudo o que eu penso a respeito do poder do rock sobre as pessoas, pude ver ontem, in loco, no show do Chefão.
Ele carrega, desde o tempo em que outros carregavam, a bandeira da coisa. Rock é libertação, é desafiar limites, é autoconhecimento, é sobre ser maior que a vida, mesmo que essa sensação dure os três minutos de uma canção ou duas, três horas de show. Ao vivo, numa distância em que se pode fazer o contato visual, Bruce Springsteen é INSUPERÁVEL. Talvez já o fosse, desde os anos 80. Desde os anos 70? Pode ser. Parece que essa gente da E Street Band, velhíssimos ou novíssimos integrantes entregam algo de suas vidas em cada show. NÃO É UMA RELAÇÃO PROFISSIONAL, é algo ESPIRITUAL.
Curioso que um cara nascido no país mais opressor do planeta seja capaz de nos libertar e fazer acreditar em valores REAIS, comofaz Broooce. Ele vai até o limite, leva a gente junto, nos eleva até o palco na hora em que desce dele. O show, todos deveriam saber, NÃO EXISTE SEM PÚBLICO. Enquanto artistas de merda desprezam seus fãs, não tocam hits, adotam atitude blasé, o Boss DEPENDE do público para existir. Aliás, TODO ARTISTA depende. Ele sabe, ele é um homem com um dom, capaz de transformar as pessoas, não é exagero o que digo. Sua banda é arrasadora, não há solos em excesso, a ideia é compor o todo, é se integrar a essa energia avassaladora que este homem catalisa e dispara sobre as pessoas.
Acredito que um show como o de ontem seja capaz de curar, de salvar, de conduzir, de reafirmar a fé de todos em todos. Rock é pra isso. Bruce deixou uma mensagem pra todos ontem, a de que é possível, assim, latu sensu. Tudo é possível depois que a gente se encontra com ele. Agradeço a paciência que todos meus amigos e “amigos” do Facebook e da vida têm com minha visão cada vez mas ortodoxa e ranheta da música pop, a qual acredito ter sido encampada definitivamente pelo poder monetário e peço a todos que ouçam e acompanhem a carreira e os shows do Chefe, sempre que possível. Ele também diz o mesmo, só que de forma muito mais grandiosa, eloquente e coerente, que eu, claro. Sobre o show? Foi transformador, de longe, DE LONGE o melhor show que eu vi em terras brasileiras, superando Stones, Dylan, Macca e todos os outros. E onde foi? Na espontaneidade, na comunhão, na integração e na maravilhosa CONFUSÃO entre quem é artista e quem é público, quando estamos num show do Boss. Rock In Rio, sua razão de existir já foi revelada. Se você tem uma banda de rock, se interessa por algo além da melodia, vá atrás desse sujeito. E, pra você que é “artista” de rock, por favor, ou tente fazer como o Chefe ou simplesmente desista do ofício e vá fazer qualquer outra coisa. Não há mais meio termo depois de um show como esse, o padrão foi elevado demais, realmente, não tem pra ninguém.”.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.