Os Fablemans: amor pelo Cinema a partir da vida real

 

 

“Os Fablemans” é um desses filmes que nos fazem esquecer de outros. Explico. Steven Spielberg, seu realizador, diretor, co-roteirista e personagem implícito, já fez mais de trinta filmes, recebeu inúmeros prêmios, criou figuras da cultura pop perenes em seus longas e, mesmo assim, saí do cinema sem lembrar deles. E note que estamos falando de “ET”, “Caçadores da Arca Perdida”, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, ou seja, produções que estão no inconsciente coletivo de umas duas gerações, pelo menos. E “Os Fablemans”, sua mais recente realização, consegue este feito imenso, plenamente justificado, a meu ver. E há muitos, incontáveis méritos pra isso.

 

 

 

Em primeiro lugar: o próprio Spielberg surge na tela antes do filme começar, agradecendo a todos que saíram de casa para comungar da experiência de ver o longa numa sala de cinema. De fato, assim como todos os outros trabalhos do cineasta americano, “Fablemans” é feito para ver na telona em meio à sala escura. E ele prossegue: “este é o filme mais pessoal da minha carreira”, ou seja, ele já avisa o espectador que está abrindo seu coração sem muitas salvaguardas. Em se tratando de um cara como Spielberg, este é um ato de generosidade e amor por quem está ali, na tal sala escura. O que ele vai oferecer ao longo das mais de duas horas e meia de projeção é um tíquete para suas lembranças mais ternas e pessoais, em se tratando de quem ele tornou, um cineasta pop dentro da cultura pop. Um cara que fez a transição dos grandes nomes do cinema americano dos anos 1950 e 1960 para as décadas seguintes, até hoje. Não é pouco.

 

 

E, como Spielberg é esse cara, ele dá acesso às suas lembranças de família, dando espaço para que personagens como Burt (Paul Dano), Mitzi (Michelle Williams) e outros que vão surgindo aos poucos, sejam conhecidos pelo público, sendo que, eles nada mais são do que seus pais, família, amigos e tal. Spielberg não tem medo de encher o roteiro, as imagens e tudo mais que está em “Os Fablemans” com dados reais e espinhosos, como, por exemplo, a relação de seus pais num país em transformação – ele, engenheiro elétrico visionário e ela, um espírito livre, pianista, artista e curiosa. E todos, judeus, numa América hipócrita e cheia de preconceitos velados. Em meio a tudo isso, o jovem Sam (Gabriel Labelle), é um adolescente que, desde muito cedo, tem bem claro o que deseja fazer da vida: ser cineasta. De um evento definidor ocorrido logo aos seis anos de idade, ele vai entendendo o papel que o ofício de fazer filmes tem em sua vida e como ele lhe serve de diferentes formas.

 

 

De um “hobby”, como seu pai insiste em dizer, a cinematografia vai evoluindo até se tornar um traço da personalidade de Sam e vai dando a ele poderes para perceber o mundo com mais precisão, mesmo que isso custe momentos duros e tristes. Ao longo de pouco menos de duas décadas da vida desta família, o espectador passeia pelo que chamamos de “rito de passagem” ou “coming of ages”, ou seja, o amadurecimento de uma pessoa, sua transição pela adolescência, num processo em que a gente entra de um jeito e sai de outro, completamente transformada e modificada pelos eventos que acontecem neste meio tempo. No caso de Sam, várias mudanças de cidade por conta da profissão do pai, que vão gerando uma tensão entre a própria família e evidenciando segredos e circunstâncias que causarão mudanças profundas em Sam, nos pais e nas três irmãs pequenas.

 

 

A lente de Spielberg mostra tudo isso numa narrativa que evita todo e qualquer clichê de filme autobiográfico, abrindo espaço para momentos realmente líricos e sensacionais, de beleza e doçura impressionantes. Em meio a um elenco muito bem escolhido, além dos ótimos desempenhos de Dano e Williams, há uma aparição genial de Judd Hirsch, como Tio Bóris, um tio-avô de Sam, que aparece num momento específico da história e que rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para Hirsh. Além dele, a jovem atriz Julia Butters, que vive Reggie, a irmã de Sam, que consegue se destacar mesmo com poucas oportunidades, até que, numa cena específica, ela tem espaço para mostrar a que veio. Sem falar na melhor atuação da carreira de Seth Rogen, um ator controverso e que não tem no talento dramático o seu maior atrativo. Sob a batuta de Spielberg, ele recebeu um papel de destaque – como Bennie, melhor amigo de Burt – e realmente brilha.

 

 

“Os Fablemans” é cinemão da melhor espécie. É um filme para ver várias vezes, notando os detalhes da ótima produção, além de perceber as nuances de interpretação, escolha da trilha sonora – mais uma parceria de Spielberg com John Williams – e muito mais. Ele é um projeto que Steven concebeu junto com sua irmã, Anne, em 1999, mas que só foi tirado da prancheta após a morte dos pais, Leah (2017) e Arnold (2020). Mesmo durante as filmagens de “West Side Story” (2021), Spielberg já estava desenvolvendo a pré-produção de “Os Fablemans”.

 

 

Em meio a uma carreira tão importante e cheia de acertos impressionantes, o novo longa encontra papel de destaque e surge como uma carta de amor derramado e sincero ao cinema, à vida e à importância das pessoas que nos ajudam a ser quem nos tornamos, seja de que forma for. Um filmaço.

 

 

 

Em tempo: “Os Fablemans” ganhou o Globo de Ouro de “Melhor Filme Dramático” e “Melhor Diretor”.

Está indicado para sete Oscars: “Melhor Filme”, “Melhor Diretor”, “Melhor Atriz” (para Michelle Williams”, “Melhor Ator Coadjuvante” (Judd Hirsch), “Melhor Roteiro Original” (Steven Spielberg e Tony Kushner”, “Melhor Trilha Sonora” e “Melhor Design de Produção”.

 

 

Em tempo 2: a sequência em que o jovem Sam encontra com um notório e genial cineasta americano no fim do filme é absolutamente genial, seja pelas falas, seja pela presença de um outro cineasta genial e americano que interpreta o papel.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *