The Last Of Us e uma lembrança do REM
Eu ainda não escrevi nada sobre “The Last Of Us”, que está em cartaz na HBO há quase dois meses, por um motivo: me faltam palavras. A série é tão impressionante que eu só faço ficar meio perplexo com as soluções dadas para uma narrativa pra lá de manjada: o fim do mundo via apocalipse zumbi. E, como uma pessoa que jamais viu o jogo para Playstation que inspirou a série estrelada por Pedro Pascal e Bella Ramsey, eu meio que me encontro num semi-limbo de pessoas que não têm qualquer vínculo emocional com a história, que estão nessa, justamente, por serem fãs das visões de fim de mundo que surgem por aí. No caso do apocalipse zumbi, o que mais me incomoda e assusta é que a sociedade sempre está a um centímetro da ruína total. Tudo o que existe – especialmente leis, bom senso, moral, estado, governo – cai por terra em questão de dias e a humanidade regride a um estado de barbárie, sempre com espaço para espertalhões e bandidos que, espertos, aproveitam o caos para tomar o poder e oprimir os que restam. Claro, é uma metáfora para seres humanos sem humanidade, mas, à medida que avançamos no tempo, a ficção é incomodamente plausível.
Mas não é disso que quero falar. O sétimo e mais recente episódio de “The Last Of Us”, “Left Behind”, não é o mais acachapante exibido até agora (meus preferidos estão entre o terceiro e o quinto), mas serve para mostrar o quanto a série já é um produto da cultura pop, devidamente enredado a outros produtos e como essa condição pode nos fazer adotá-la desde já entre os nossos mais queridos momentos na telinha. Jogadores e espectadores de “The Last Of Us” sabem que a música desempenha um papel importante na história. Eu já havia lido a respeito, mas, ao contrário das produções que enchem cenas e sequências supérfluas com clássicos do rock, do pop, do soul e funk, aqui a história é bem diferente. Além de terem encomendado um belíssimo score para o compositor argentino Gustavo Santaolalla, os produtores têm a noção de que não há espaço para desperdício, o uso de canções é preciso e implacável, nunca decepcionando quem é fã dessas inserções de música em narrativa de cinema ou série. Até aqui, a série havia usado duas canções com muita precisão: “Never Let Me Down”, do Depeche Mode, safra 1987 e “Long Long Time”, sucesso de 1979 de Linda Ronstadt. Mas foi neste sétimo episódio, que esta habilidade foi provada em definitivo.
Se você não gosta de spoilers, advirto que, a partir daqui, terei que falar de eventos deste episódio e dos anteriores, não há como ser diferente. Se você não gosta, volte aqui depois de ver.
A gente lembra que, ao fim do episódio anterior, Joel (Pascal) cai ferido após um combate com saqueadores no campus da Universidade do Colorado, pra onde ele e Ellie (Ramsey) foram, em busca dos Vaga-Lumes que seriam capazes de estudar o sangue da menina, que a torna imune à infecção de fungos cordiceps, que praticamente dizimou a humanidade em 2003. O episódio sete começa a partir daí, com Ellie tentando encontrar um jeito de salvar Joel, que está perdendo muito sangue. Ele diz para que ela volte e busque contato com seu irmão, Tommmy, que está, pelo menos, a cinco dias de viagem dali. A ideia de Joel é, na verdade, um pedido para que Ellie se salve e o deixe ali, para morrer, uma vez que não há mais como avançarem. Eles discutem, ela acaba cedendo e o deixa, mas, antes de abrir a porta da sala da casa em que estão para chegar até o cavalo, Ellie tem um flashback e esta lembrança será a ação que veremos ao longo de todo o episódio.
Vemos então que a jovem tinha uma grande amiga, Riley (Storm Reid), sua companheira na Zona de Quarentena de Boston e que havia sumido por algumas semanas. Ela retorna de madrugada, entra pelo quarto de Ellie e a convence a ir com ela num passeio noturno. Logo sabemos que as duas meninas irão parar num shopping abandonado, cuja energia elétrica foi restaurada por conta de obras feitas na Zona de Quarentena. Neste momento, minha mente logo relacionou os eventos com o clipe e a canção do REM, “It’s The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)”, no qual um garoto e seu cachorro se divertem e encontram tesouros em meio a uma casa em ruínas, provavelmente atingida por alguma arma de destruição ou um acidente natural devastador. Ali, naqueles escombros, humano e cão passeiam indiferentes ao caos e a realidade, movidos pela curiosidade e pelo instinto.
Na narrativa do episódio 7, Ellie e Riley ignoram completamente o que aconteceu. O shopping fantasmagórico se torna um playground para elas, que se divertem em um carrossel, jogam várias partidas de Mortal Kombat em um fliperama e, têm tempo para encontrar felicidade em pequenos prazeres, como, por exemplo, andar numa escada rolante. Aí a maestria com as músicas entra em cena, colocando “Take On Me”, do A-Ha, como fundo para este passeio pela escada rolante. A cena é simples, mas muito poderosa, diante das circunstâncias. Mais adiante, as duas se fantasiam com máscaras gigantes e dançam sobre o balcão de uma loja, ao som de “I Got You Babe”, na versão de Etta James. Pouco antes, no quarto de Ellie, quando Riley chega para levá-la para o passeio, podemos ver o Walkman da menina e as duas fitas cassete: “The Hits Of A-Ha” e “Tell Momma”, de Etta. Daí até o fim do episódio, “The Last Of Us” fará o que tem feito de melhor: explorar vários gêneros do cinema tendo em vista o cenário que une toda a ação, o mundo devastado. No caso deste capítulo, o drama mais genuíno e devastador é o pano de fundo para chegarmos ao fim.
Como eu não conheço o jogo “The Last Of Us”, não tenho ideia do que irá acontecer até o final da temporada, mas já sabemos que haverá uma segunda leva de episódios, até porque, existe uma segunda parte do jogo. O mérito da série é que, até agora – e já se vão sete episódios – não houve uma única parte previsível, banal ou banhada de clichês. O que se viu foi uma sucessão de pequenos momentos de perfeição em termos de atuação, roteiro, direção e tudo mais. Só nos resta esperar.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.