Medida Provisória incomoda e cumpre objetivo

 

 

Só uma pessoa que não conhece a lógica terrível da sociedade brasileira poderia dizer que “Medida Provisória” “pesa a mão” nas situações retratadas em seu roteiro. Mesmo assim há muita gente incomodada com o tom forte que a narrativa do longa apresenta. Além disso, a partir do momento que nossa débil democracia se revelou frágil o bastante para comportar os eventos que aconteceram de 2016, incluindo o impeachment sem provas da Presidente Dilma Rousseff e a eleição do atual ocupante do cargo, com uma trajetória política que contempla o apoio sem cerimônias a práticas violentas e preconceituosas, dá pra dizer que o longa de Lázaro Ramos, estreando na direção, é totalmente crível. Claro que há alguns problemas no desenrolar na história que é contada, na escolha do elenco mas tudo isso é pequeno se comparado com a eficácia da mensagem que o filme transmite.

 

O longa é baseado na peça ‘Namíbia Não’, escrita pelo baiano Aldri Anunciação em 2010 e que subiu aos palcos pela primeira vez no ano seguinte, já com direção de Lázaro também no teatro. O enredo é simples e contundente. Num futuro próximo, o Brasil vive um governo em que não há mais Carnaval e que os negros – chamados agora de “melaninados” – são alvo de preconceitos por parte da maioria da sociedade. A situação política é tensa e surge como uma narrativa paralela à do trio de personagens principais – o advogado Antônio (Alfred Enoch), a médica Capitu (Taís Araújo) e o jornalista André (Seu Jorge), que dividem um apartamento no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio. À medida em que o ambiente político se acirra, começam a surgir iniciativas do Governo Federal com vistas a “reparar” a injustiça cometida ao longo de mais de 400 anos de escravidão. Tem início uma campanha de incentivo para que os “melaninados” voltem para a África, com custeio da passagem de ida pelo próprio governo, como uma forma de compensação pelos maus tratos vividos por gerações e gerações de afrodescendentes. O que começa como algo até risível, vai ganhando força e, por conta de aprovação no Poder Legislativo da Medida Provisória 1888 (ironia máxima), o que era incentivo torna-se obrigação e as forças de repressão estatais vão passar a perseguir e capturar os “melaninados” que resistirem à – agora – ordem de deixar o território nacional rumo à África.

 

Como eu disse, o roteiro é bem explícito e este mote é só o começo. “Medida Provisória” não poupa o espectador de ver como falas e atitudes tristemente cotidianas são manifestações explícitas de racismo e coloca tudo isso na pele de personagens muito críveis. Tem lugar então a vizinha dos três “melaninados” principais, vivida por Renata Sorrah, que passa a colaborar com a repressão porque não parece tolerar a ideia de viver no mesmo espaço que eles. E tem lugar a funcionária pública vivida por Adriana Esteves, que encarna muito bem a figura do preconceito materializado e cheio de cinismo, que estamos tão acostumados a ver.

 

Como diretor, Lázaro Ramos vai bem. Filma de forma aceitável, dá espaço para planos maiores e alterna com cortes bruscos e, o mais bacana, povoa as cenas com referências à clandestinidade que tomou conta dos símbolos negros – estandartes, bandeiras, imagens, pichações – tudo colocado de um modo absolutamente proposital, para dar ao espectador a dimensão das contradições que acontecem o tempo todo na tela.

 

O filme peca em dar à plateia a liberdade total para ignorar algumas mancadas, como, por exemplo, materializar a resistência dos “melaninados” foragidos em apenas uma forma organizada de agrupamento, algo que, se fosse baseado na dinâmica social atual, certamente seria muito mais fragmentada, caótica e violenta. Nessa hora a coisa fica perigosamente fora da realidade, até para um filme que se assume como uma ficção distópica, porém, como dissemos, num momento como o que vivemos nesses últimos anos – e, no caso dos negros, há séculos – a mensagem de “Medida Provisória” é mais que necessária.

 

Vá ver, incentive o cinema nacional, fale do filme para seus amigos e amigas e junte-se na missão cotidiana de evitar este futuro. Ele já pode ter começado. Como diz o personagem de Seu Jorge a certa altura: “como deixamos isso acontecer? Como rimos disso no início, achando que era impossível?”. Pois é.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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