O Zé Gotinha miliciano
Todo mundo sabe, todo mundo viu: um dos filhos do ocupante da presidência publicou nas redes sociais um desenho do Zé Gotinha empunhando um fuzil automático, aludindo a uma ofensiva (militar) contra a covid-19. Com o perdão da expressão, todo mundo ficou puto com isso. É a mesma coisa que você pegar um revólver e colocar nas mãos da Mônica em vez do coelhinho e fazê-la atirar no Cebolinha e no Cascão. Assim como os personagens de Maurício de Souza, o Zé Gotinha foi criado para as crianças e pelas crianças.
Ainda que tenha o traço e conceito do artista Darlan Rosa, quando nasceu, em 1986, o Zé Gotinha veio com a intenção de tornar a vacinação algo mais agradável para a criançada, que sempre teve medo de vacina, de injeção e tal. Quem nunca viu – ou até chorou – quando ia tomar uma agulhada no braço? Ou no bumbum? Pois é. Daí o Zé surgiu – com o nome escolhido em concurso nacional para alunos – para encarnar o ato da vacinação, facilitar a vida dos miúdos e abrandar-lhes o medo. Funcionou.
O Brasil enfrentava a poliomielite em 1986 e a campanha de imunização daquele ano foi um sucesso. O vírus da doença foi erradicado do país e o Zé tornou-se símbolo permanente de todas as campanhas de vacinação feitas no Brasil. Até agora.
Este governo atual é tão desgraçado que até o Zé Gotinha sofre com ele. Não bastasse seu sumiço da mídia justo na maior pandemia da história do país, o personagem não resistiu à politização hedionda que os burristas conferiram ao cuidado e às medidas restritivas que a covid-19 impõe. Ou seja: quem tem medo da doença, pratica as medidas de isolamento e deseja a vacinação, segundo esta gente péssima, é “fresco”, “faz mimimi” e por aí vai. É a lógica do recreio da quinta série governando o país.
De sumido, o Zé Gotinha então reapareceu ontem, empunhando um fuzil, com uma bandeira brasileira como capa e disparando contra o coronavírus. Não por acaso, a imagem veio dois dias depois do presidente Lula mencionar o sumiço do personagem, dizendo que ele é suprapartidário e humanista. Que ele havia sido demitido, perdido a função. E foi.
Só que os burristas encontraram um jeito de voltar com o Zé. Agora, arma na mão, ele surge como portador da única lógica que essa gente conhece, a da violência. É como se o personagem não precisasse seguir as normas de vacinação – que ele mesmo significa – e ao próprio ato de imunizar-se, mas, sim, mandar tudo às favas e sair metralhando todo mundo por aí. Como um miliciano, que existe porque há um vácuo de leis e presença do estado que possibilita sua existência.
A imagem do Zé Gotinha com arma na mão é o ideal de conduta dessa gente. E isso, ainda que pareça pouco, é seríssimo. Poucas situações definiram tão bem essas pessoas inacreditáveis, inadmissíveis, insuportáveis que foram conduzidas ao poder no Brasil.
Pobre Zé Gotinha, nem ele escapou.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.