Carne Doce reforça identidade em novo álbum

 

 

 

 

 

 

Carne Doce – Cererê
41′, 10 faixas
(Tratore)

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

 

 

Não parece, mas a Carne Doce completa dez anos de existência em 2024. Ou, melhor dizendo, se completam dez anos desde o lançamento do primeiro álbum, homônimo. A banda, capitaneada por Salma Jô e Macloys Aquino, iniciou suas atividades algum tempo antes, tateando em busca de sua sonoridade própria e acumulando experiências, coragem e destemor em quantidades suficientes para dar este primeiro passo tão importante. E se eles, habitantes de Goiânia, iniciaram sua trajetória do jeito que foi, com todos os álbuns, singles, shows e sucessos que obtiveram, isto tem a ver diretamente com o Centro Cultural Martim Cererê, homenageado no título deste novíssimo trabalho, o quinto da carreira. E, não por acaso, ao escolherem este nome e esta história para seu álbum, automaticamente assumem uma necessária revisita a tempos iniciais, talvez em busca de uma identidade ou de permissão para assumirem novas versões de si mesmos.

 

O que importa em “Cererê” é que, de acordo com a tradição da Carne Doce, trata-se de um ótimo álbum. Com o tempo, a sonoridade da banda foi evoluindo para um formato próprio de indie rock nacional, muito próximo de algumas inflexões da música brasileira setentista/oitentista, calcando sua força tanto nos ótimos instrumentais e arranjos, bem como na presença vocal de Salma, certamente uma das melhores cantoras brasileiras de sua geração, seja em disco, seja ao vivo. João Victor Santana, guitarrista, produtor e responsável pelo uso de samples, eletrônica e demais revestimentos sonoros, é um sujeito com delicadeza e percepção suficientes para entender a complexidade sonora da banda e contribuir com detalhes tão pequenos de nós dois em termos de timbres, soluções e citações que contribuem para que o prazer auricular de “Cererê” se multiplique em progressão geométrica.

 

As canções mostram o quanto Salma, Mac e o restante da banda (além de João, Aderson Maia no baixo e Fred Valle na bateria) funcionam como compositores e ourives dentro das paredes do estúdio. Os climas se alternam ao longo das dez faixas de “Cererê”, mostrando melancolia, dúvida, ingenuidade partida e demais sintomas da maturidade em tempos como os nossos. Olhar para o passado em busca de respostas é um movimento que Salma, enquanto letrista oficial da banda, parece fazer. Não se trata de nostalgia ou desejo de voltar no tempo, mas de poder olhar com nitidez – só fornecida pelo amadurecimento – o que ficou para trás. Seria banal se não fosse tão verdadeiro e bem construído. Mac reafirma o bom guitarrista e violonista que sempre foi, fazendo lembrar, em alguns momentos, os discos que gravou com Salma sem a Carne Doce, “Salma e Mac” (2021) e “Voo Livre” (2022).

 

As duas primeiras canções mostram a excelência do álbum. “Noite dos Tristes” (que não é nada triste) fala sobre entender o estado de espírito possível no cotidiano atual e, a partir desse conhecimento, buscar conexões com quem está – e se enxerga – do mesmo jeito. Parece simples, mas não é (“gente que também é um pouco triste, mas curiosa”). Tem a ver com resistir à prostração geral, à hipnose dos grandes meios de comunicação, enfim, não sucumbir ao senso comum. Em “Cererê”, a canção, Salma relata suas vivências – compartilhadas com os integrantes da banda – de frequentar o Centro Cultural, palco de festivais importantes dos anos 2000, como Bananada e Goiânia Noise, primeiro no plano pessoal, depois entendendo que tal comportamento se encaixa em toda uma coletividade de pessoas. Ao mesmo tempo, Salma e a banda se colocam no lugar do público do lugar e, numa esfera maior, de resistência à hegemônica cultural do agro-negócio, tão forte em Goiânia, permanecendo e se cristalizando com o passar do tempo. Além dessas duas, “Suspiro”, mais sutil e cerebral, “Latada”, “Na Bad” e a pungente “Despedida”, que encerra o álbum, são ótimos momentos.

 

“Cererê” mostra uma banda cheia de vontade de contar sua história. Pronta para reencontrar seu público em shows pelo país, procurando reviver e oferecer suas experiências de dez, quinze anos atrás, no próprio Centro Cultural, acreditando que isso pode salvar e redefinir vidas. E eles não estão nada errados sobre isso.

 

 

Ouça primeiro: “Despedida”, “Dança dos Tristes”, “Cererê”, “Na Bad”, “Suspiro”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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