O início da saga de Björk

 

 

Lançado em julho de 1993, Debut é um nome apropriado para o primeiro álbum de alguém. Gravadas em vários estúdios ingleses entre o final de 1992 e o início de 1993, as 11 faixas dessa obra atraíram os holofotes para o trabalho solo de uma artista cuja voz já se destacara em outras bandas.

 

Talvez Debut não seja o álbum mais importante de Björk, especialmente no cotejo com os outros dois da mesma década, Post (1995) e Homogenic (1997). Mesmo assim, é ele que coloca as cartas que continuarão a ser jogadas pela islandesa. E, fora do universo estrito do rock, foi um lançamento que certamente apontou algumas das direções futuras da música pop.

 

 

Correção histórica

A rigor, Debut não é o primeiro álbum de Björk. Com seu nome, um lançamento anterior ocorreu em 1977, quando ela tinha apenas 11 anos. Foi resultado direto de sua educação musical na infância, quando aprendeu piano e flauta. A garota se tornou uma celebridade nacional na Islândia.

 

Essa estreia teve a colaboração de seu padrasto, ex-guitarrista de uma banda local. Ele contribuiu com a composição de uma das faixas. Outras duas eram versões de músicas de Stevie Wonder e dos Beatles.

 

Björk Guðmundsdóttir não se acomodou no papel de estrela adolescente. Em parte como consequência de sua criação num ambiente comunitário, em parte como revolta aos ideais hippies desse ambiente, prosseguiu sua formação musical e dedicou-se a novos projetos sonoros.

 

Com 13 anos, formou com outras garotas a Spit and Snot, banda punk. Em seguida – estamos em 1980 – fez parte de um grupo de jazz fusion, o Exodus. Após outras experiências, encontrou um paradeiro na Tappi Tíkarrays.

 

A Tappi Tíkarrays foi um quinteto que lançou um EP em 1982 e um LP em 1983. Participava da cena pós-punk islandesa, comentada, com os devidos enquadramentos, no livro de Fábio Massari. Outras bandas da cena incluíam Purrkur Pillnikk e Þeyr, que cultivavam boas relações com seus correspondentes britânicos.

 

Ainda em 1983, Björk deixou essa banda para formar outra, a Kukl. Ela lançou três registros pelo selo britânico Crass, o último dos quais em 1986. No mesmo ano, saiu o primeiro single de outra banda com a participação de Björk, a Sykurmolarnir, destacando “Ammæli”. Vale escutar a original islandesa de “Birthday”, faixa que projetou o rock ilhéu para muitos continentes.

 

The Sugarcubes começou como um quinteto, com integrantes da Kukl e da Purrkur Pillnikk, e assinou com o One Little Indian, selo britânico que também lançaria Debut. O primeiro álbum, contendo os sucessos “Birthday” e “Deus”, apareceu em 1988. Seguiram-se outros dois, em 1989 e 1992.

 

Muito antes de iniciar sua carreira solo, Björk compunha canções que julgava pouco afins a suas bandas de então. Uma fita demo com três dessas músicas começou a circular em 1990, quando foram germinando as ideias de uma produção independente. Debut foi o resultado desse processo.

 

Nos projetos anteriores de Björk, há uma continuidade que se enraíza no pós-punk e se desdobra em coisas mais experimentais, caso da Kukl, e sonoridades mais pops, embora repletas de estranhezas, onde entraria a Sugarcubes.

 

Debut apresenta outra concepção musical, que tem a ver, em leitura com alguma simplificação, com duas influências. A primeira delas foi o jazz, que surge na trajetória de Björk em incursões esparsas e é reforçada pela gravação em 1990, com o trio Guðmundar Ingólfssonar, do LP Gling Gló. Seu repertório é integrado na maior parte por versões de jazz standards traduzidos e cantados em islandês.

 

O outro vetor que conflui em Debut é a música eletrônica. Essa também não era uma novidade no percurso de Björk, amante que era de um Kraftwerk. Mas no início dos anos 90 a jovem islandesa aproveita as turnês da Sugarcubes para mergulhar de cabeça e corpo na cena dance, tornando-se uma admiradora de DJs influenciados pelo techno de Detroit e pelo house de Chicago.

 

Dessa imersão na música eletrônica surge a parceria com Graham Massey, do 808 State, banda de Manchester associada ao acid house. O álbum ex:el, de 1991, traz duas faixas com vocais de Björk. No ano seguinte, Björk assina letras e vocais de “Takk”, parceria com Þórhallur incluída na trilha sonora de um filme islandês.

 

Tudo isso acontece no mesmo momento em que Björk fixa residência em Londres, aprofundando sua conexão com o universo britânico. A essa altura, Björk é mãe de Sidri, que faria sete anos em 1993. A debandada da Sugarcubes abre uma outra fase em sua vida, preenchida por experimentações musicais e por novos relacionamentos afetivos.

 

Debut nos apresenta alguém cuja condição é duplamente significativa. Ao se separar de bandas compostas majoritariamente por homens e legatárias de tendências derivadas do rock, Björk afirma sua independência como artista mulher e como música na vanguarda.

 

 

Eletrônico-jazz, entre outras coisas

A independência permite novas parcerias, em especial a do produtor Neele Hooper. Hooper era então uma figura em ascensão, saído da mesma cena de Bristol que se desdobraria no trip hop, uma variante da eletrônica que em si mesma era resultado da síntese de múltiplas influências. Björk trabalharia com Tricky, outra figura da mesma cena, mais adiante.

 

Quanto a Hooper, integrou o Soul II Soul e se tornou um produtor requisitado. Pouco antes de colaborar com Björk, participou do segundo álbum de Sinead O’Connor. Chegaria a trabalhar com Madonna. Ele introduziu algumas colaborações no álbum da islandesa e equalizou as várias linhas que formam Debut.

 

Um bom exemplo é a faixa de abertura, lançada como single pouco antes do álbum. A base é um sample de “Go Down Dying”, composição de Tom Jobim e arranjo de Quincy Jones. A música é parte da trilha sonora de The Adventurers, filme de 1969 com direção musical do brasileiro-estadunidense Eumir Deodato (que mais tarde colaboraria diretamente com Björk). Em “Human Behaviour”, essa base interage com elementos percussivos, com preenchimentos de teclados e riffs de guitarra.

 

No lado mais eletrônico de Debut, podemos colocar “Crying” e “There’s More Than This”, perfeitas para pistas de dança. Aliás, a segunda foi processada tendo como ambiente o banheiro de um clube londrino.

 

A eletrônica continua dando o tom em “Violentally Happy”, cheia de variações, e “One Day”, dominada por teclados. “Big Time Sensuality” tem toques jazzísticos e foi uma das faixas que receberam vários remixes. Pessoalmente, considero que as versões trabalhadas pela Fluke ficaram melhores que a original.

 

O videoclipe de Stéphane Sednaoui é embalado por uma das versões da Fluke. Björk é filmada dançando em cima da carroceria de um caminhão que roda por Nova York. A combinação entre urbanidade e sensualidade é insinuante. É também um contraste com a capa do álbum, a foto da cantora em pose reservada, contida.

 

Do lado mais jazzístico de Debut, temos “Come To Me” e “Venus As a Boy”, ambas com a marcante presença de cordas, contribuição de Tavin Singh, alguém próximo da turma de Bristol. A tabla de Singh e a percussão de estilo japonês na segunda faixa mostram a influência de elementos orientais.

 

Em “Aeroplane”, o jazz aparece mais nítido. Os metais têm participação especial. Eles retornam em “The Anchor Song”, onde estão sozinhos com a voz de Björk, nesta faixa que fecha o álbum e foi a única a ter produção solo da cantora.

 

Ainda falta mencionar, entre as onze faixas de Debut, “Like Someone In Love”, a única música não original. Trata-se de versão de um jazz standard composto em 1944 e imortalizado em muitas vozes, de Bing Crosby a Chet Baker. Björk está acompanhada por uma harpa (e quase nada mais), participação de Corky Hale, que chegou a ser cogitada como produtora do álbum.

 

Não podemos deixar de notar que o principal instrumento em Debut é a voz de Björk, com suas vertiginosas variações e seus desconcertantes efeitos. É essa mesma voz, dona de melodias diligentemente elaboradas pela cantora, que torna cada faixa do álbum específica, diferente de todas as demais. Björk ainda toca teclados e flauta em algumas músicas.

 

Sonoramente, a lógica que orienta o álbum deve bastante à música eletrônica, permitindo a multiplicação de versões e a mutação de arranjos, como mostram as performances ao vivo, que vão desde apresentações em festivais como o de Glastonbury em 1994 e num MTV Unplugged.

 

Liricamente, “Like Someone In Love” entrega o tema dominante em Debut: o amor. Tema que vem misturado com sexo (“Venus As a Boy”) e paixão (“Big Time Sensuality”). Esses sentimentos são várias vezes expressos em situações que envolvem distância e expectativa (“One Day”, “Aeroplane” e “Violentally Happy”).

 

A pessoa que aparece nas letras é alguém que curte um after party (“There’s More…”), que admite que a solidão pode fazer parte da autonomia (“Crying”) e que pede por proteção (“Come To Me”).

 

Algumas versões de Debut incluem uma faixa adicional, a classuda “Play Dead”, lançada originalmente como parte da trilha sonora do filme The Young Americans (1993). Em registro mais amargo, a letra dá sequência ao jogo entre atração e distância.

 

 

Surreal

Duas letras divergem do tom predominante em Debut. Em “The Anchor Song”, o mar revela-se como a casa de quem canta. Em “Human Behaviour”, estranhos e fascinantes humanos são descritos do ponto de vista de um animal.

 

A relação desses enredos com o surrealismo vai para além do alusivo se levamos em conta a aproximação entre Björk e Michel Gondry. Inicialmente baterista em uma banda francesa, Gondry desenvolverá, em sua produção visual, um estilo que pode ser interpretado como uma reatualização do surrealismo – movimento artístico iniciado nos anos 1920.

 

Com “Human Behaviour”, tem início uma colaboração que vai se prolongar por muitos anos. Ela é mais forte nos anos 90 e interfere mesmo nas composições de Björk. Em Debut, Gondry realiza apenas um vídeo, colocando em confronto um caçador humano e sua presa vitoriosa, representada por um urso de pelúcia em tamanho natural. Björk contracena com esses personagens, em cenários que remetem a desenhos infantis e movimentos operados por técnicas de animação.

 

A relação com o surrealismo reaparece em outro vídeo, o de “Venus As a Boy”. Sophie Muller nos intriga ao mostrar Björk às voltas com ovos em uma cozinha. Em um plano mais aparente, podemos pensar em associações entre paixão e comida. Mas as coisas ficam mais interessantes quando soubemos que, àquela época, o livro predileto de Björk era História do Olho.

 

Esse livro, publicado sob pseudônimo há quase cem anos, junta um pouco da biografia de seu autor (o francês Georges Bataille) e muita ficção num relato onírico sobre as obsessões sexuais de dois jovens. Nessas aventuras, os ovos são ao mesmo tempo matéria e metáfora de uma cadeia de seres que passa pelos olhos.

 

Bataille esteve próximo dos surrealistas dos anos 1920 e 30 e seu livrinho perturbador já havia inspirado o título do primeiro álbum da Kukl (The Eye), uma das bandas de que Björk participou nos anos 80. Essa e outras bandas daquela época iam além da música, apresentando-se como coletivos de artivistas na Islândia.

 

Björk tomou parte desses grupos, colaborando como escritora e ilustradora. A existência do Smekkleysa se confunde com a criação da Sugarcubes. Antes dele, havia outro coletivo, o Medúsa, que reivindicava o surrealismo como base. Se pensarmos na letra de “Deus” (alguém que não existe, mas se existisse teria desejos bem humanos), veremos como tudo isso se expressava musicalmente.

 

“Violentamente feliz” é uma expressão que certamente agradaria a uma das figuras centrais do surrealismo, André Breton, que defendia uma beleza convulsiva. A insanidade corre solta no vídeo para essa faixa de Debut, dirigido por Jean-Baptiste Mondino, também autor da foto da capa do álbum.

 

Vamos concordar que há muito surrealismo, em sentido amplo, na Islândia, país com paisagens únicas (irreais se não existissem), com uma história que faz uma passagem rapidíssima do rural ao urbano (provocando misturas entre eles) e com uma população que se destaca pelas maiores taxas mundiais de escritores per capita…

 

Se Debut é o álbum menos islandês de Björk, ele não deixa de expressar traços desses quadros e fatos surreais. A própria cantora é exemplo disso, durante suas apresentações, quando literalmente se fundem a pessoa e a música, “the hardcore and the gentle”…

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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