O impressionante “Ultraleve” de Edgar

 

 

Edgar – Ultraleve

Gênero: Eletrônico, hip-hop

Faixas: 9
Duração: 35 min.
Produção: Pupillo
Gravadora: Deck

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

Liguei o som do computador e selecionei “Ultraleve”, o segundo álbum do rapper paulista Edgar para ouvir e analisar. Fui até a cozinha para ver o que havia para comer, mas tive que voltar, ainda em jejum. A sonoridade que inundou minha pequena sala, através da execução de “Manifesto do Azulejo”, primeira faixa do álbum, me impediu de fazer qualquer outra coisa além de ouvir. E repetir várias vezes a canção, decorar a letra e quase ir na janela para gritar a impressionante sequência de versos:

Olha como ela vai
Olha como ela vem
Maceió uma hora cai
Vira um condomínio da Brasken
Uma nova Dubai
Que vai afundar também
Rio de Janeiro vem na sequência
Virando uma Nova Jerusalém
E o povo vive à margem das barragens
Esperando que as sirenes toquem

 

Confesso, não estava preparado para isso. E, bem, a música feita no país em 2020/21, sob a influência do cotidiano atual é isso mesmo. Raiva, fúria, mágoa, tristeza, ou, como o próprio Edgar já fala na canção seguinte, “Também Quero Diversão”: “Vivemos um looping eterno de violência, de violência, violência em busca da paz”. É isso mesmo. Estamos mudados e não é pra menos. Uma hora a nossa civilidade, a nossa humanidade, tudo isso é posto à prova. E o mérito de “Ultraleve” é dar voz a este sentimento, muitas vezes amorfo em uma gororoba de gosto amargo, travada na nossa garganta.

 

Produzido por Pupillo, o homem que assina a pilotagem de estúdio de álbuns tão bacanas na atualidade, “Ultraleve” é uma caldeirada de influências mil. Tem rap, tem funk carioca, tem eletrônica, tem hip-hop, tem ecos de manguebeat, tem muita música brasileira e tem a voz de Edgar, que me lembra demais uma versão jovem e periférica/plugada/com entrada USB de Tom Zé. E faz total sentido pensar assim, pois ele fragmenta esse discurso do Brasil burrista em mil pedaços, os reconecta numa performance que é ótima em disco mas deve ser perfeita ao vivo.

 

Cada faixa deste álbum é um mosaico à parte e, juntas, são muito poderosas. É música urbana, suburbana, de contemplação e cheia de rebuscamentos estéticos, se mostrando muito rica em referências. E tudo isso acontece muito rápido, quase não dá tempo para ver a recauchutagem da globalização em “Sala de Máquina”, muito menos ingênua que a antena parabólica plugada no mangue, lá do início dos anos 1990. Em “Sem Medo”, a voz já oscila entre Raul Seixas e Tom Zé, Edgar já vem num arranjo mais lento, mais dramático : “abram as cortinas principais da retina e vejam como a desigualdade desfila entre nós, com suas pernas bonitas, xavecando os policiais, com seus discursos separatistas”. É quase inacreditável, né?

 

Em “Procissão dos Clones”, há a participação da cantora inuíte (etnia originária do Polo Norte) Elisapie, que canta em sua língua nativa. E os versos: “A humanidade correm em círculos, como um antílope e um leão, rumo ao abismo. Atualize o seu sobrenome É muito bonito mas não mata a fome”. Em “Mentes Mirabolantes” há vocoder e a noção de que a falta de noção é um dos nossos maiores males: “Mentes mirabolantes esperam carnaval sem lockdown”, com a capacidade de rimar praticamente tudo, Edgar parece não ter limites.

 

E ele vai adiante com “A Teologia da Violência”, sem limites: “Dá náusea aguentar os fantasmas brancos de mão sangrando, dançando com a consciência quieta da nossa árvore genealógica”. “E o policial exerce bem sua fala, quando não diz nada e institucionaliza o linchamento, entrando no elenco dos espancadores, com tendência a considerar que o prazer é a justiça individual e imediata, é a finalidade da vida e o repórter cobre tudo bem de perto, como uma mosca impotente, saindo da boca da vítima”.

 

Com “O Último Peixe do Mundo”: “O problema é simples, está do seu lado, querendo que a música só tenha refrão. Você quer cifrão e alguém no caixão, vidas pretas são importantes, mentes brilhantes percebem o esquema, quem dá solução foi quem trouxe o problema, o estado fornece armas e drogas e nos transforma em prisioneiros, proíbem o baile porque conseguimos fazer nosso próprio dinheiro”.
“Todo show que você vai tem uma eficiência, se uma mão vai no joelho, outra vai na consciência”.

 

O fecho do álbum vem com “Que A Natureza Nos Conduza”, um rap mais clássico, quase noventista, com participação de Kunumi MC, que faz sua participação cantando em guarani. E Edgar segue, frenético: “O planeta vai dando sua última chance, somos a célula cancerígena que pode curar o câncer”. “Jogador de futebol, apresentador de TV, o mundo já percebeu que não precisa de você. Aqui jaz, redes sociais, terão cada vez mais mortos, gerando cemitérios virtuais”.

 

“Ultraleve” é tudo, menos leve. É uma bigorna de realidade, sem dó, sem pena, um arremesso necessário nas fuças de quem insiste em relativizar a gravidade do nosso momento, como pessoas, como sociedade, como país. Desconcertante.

 

Ouça primeiro: tudo

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “O impressionante “Ultraleve” de Edgar

  • 29 de maio de 2021 em 01:55
    Permalink

    Edgar é raro, poucos pessoas tem essa sensibilidade à sutileza da percepção.

    “Toda favela tem um prêmio nobel”

    Resposta

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