Novo álbum de Kacey Johansing parece saído da Califórnia, 1972
Kacey Johansing – Year Away
41′, 10 faixas
(Night Bloom)
Agridoce. Esta é a melhor palavra para descrever a sonoridade que Kacey Johansing faz. E o modelo que ela adota para levar adiante sua música está na Califórnia pós-hippie, de gente como Joni Mitchell, Neil Young, Carole King e James Taylor. A isso ela adiciona uma pitada de classe e fluidez dignas de um Burt Bacharach e reveste tudo com reflexões personalíssimas e muito atuais sobre perda e transformações advindas da passagem do tempo. “Year Away”, seu novo álbum, é um compêndio sobre as mudanças vivenciadas na pandemia da covid-19 – entre elas, a perda de amigos para a doença – e a sensação estranha e perplexa de ter sobrevivido num mundo transformado para sempre. Ouvir as dez faixas que compõem o novo disco é adentrar essa perspectiva sem qualquer filtro. Kacey faz questão de oferecer ao ouvinte a perspectiva pessoal sobre a sobrevivência na adversidade, entendendo que esse é um dos pontos fortes de sua criação.
A gente sempre fala por aqui: não adianta nada o artista ostentar referências e estilo se não houver talento para compor boas canções. Kacey é uma baita compositora, capaz de escrever melodias e letras que se casam como se fossem feitas uma para a outra, de uma forma absolutamente natural. Além disso, sua honestidade diante do álbum e a decisão de abrir as portas de suas vivências para o ouvinte lhe deram crédito extra. É um desfile de maravilhas melodiosas, arranjos exuberantes, com espaço para metais, cordas, teclados, pianos, tudo envolto numa névoa de beleza perene, algo que é raro de se ver e ouvir hoje em dia. Como dissemos, o estilo e a abordagem clássicas do folk rock orquestral e belo produzido na cena californiana de Laurel Canyon na virada dos anos 1960/70 servem como uma luva nos contos e histórias de Kacey, num movimento de simbiose e reinvenção. Se as primeiras canções de Carole King, Joni Mitchell e cia. falavam das decepções e dos amores num tempo de mudança e caída de ficha, Kacey empresta esse modelo, atualiza, moderniza e adapta para medos e entendimentos num redemoinho de dúvida inesperada. Ouvindo essas canções, a gente vê o quanto a covid-19 foi realmente devastadora.
A temática da pandemia, no entanto, não turva as canções do álbum com baixo astral ou tristeza com culpa, pelo contrário. O resultado é solar, elemental, natural, com por e nascer do sol às margens do rio da vida, ou algo assim. A ideia de transcendência e beleza dá o norte para o próprio conceito estético do álbum, oferecendo algo realmente belo e delicado. “Years Away” não é álbum pra se ouvir com pressa ou de forma procedimental. Ele exige distanciamento, silêncio e atenção, oferecendo em troca uma experiência realmente revigorante e forte. Ainda que seus trabalhos anteriores mais recentes, os ótimos “The Hiding” (2017) e “No Better Time” (2020), tenham o mesmo apreço pelas sonoridades folk mencionadas, “Year Away” é bem diferente justo por conta da temática. Se os anteriores eram belos e reconfortantes, o diálogo e os relatos do novo disco é parte decisiva da magia oferecida aqui. A própria faixa de abertura, que leva o título do álbum, é um aviso do que está por vir. “So, what you’ll have to say after a year away?” é o verso inicial, a partir do qual Kacey irá dar a ideia exata da profundidade dos últimos tempos. É um cartão de visitas.
A partir daí, adentramos este domínio meio preservado das observações banais. “Not The Same” e belíssima “Old Friend” falam sobre como nos transformamos com o passar do tempo, às vezes de um modo que não é perceptível nem para as pessoas mais próximas, que pensam que somos os mesmos de cinco, dez anos atrás. Kacey vai falando sobre como é difícil atender expectativas baseadas numa impossível imutabilidade, detectando que relacionamentos baseados nisso tem a se tornar tóxicos e prejudiciais. Por outro lado, uma canção como “Last Drop” fala sobre como pode ser inútil esperar por um amor ideal pelo simples fato de que ele já pode ter chegado e você nem notou. E tem a cortante “Daffodils”, feita em homenagem a uma amiga que Kacey perdeu ao longo da pandemia e como esta pessoa aceitou que iria partir deste plano com suavidade e graça, tornando o processo possivelmente mais simples para si e para quem estava à sua volta. “Shifting Sands”, que tem um arranjo espantoso e belíssimo, é mais uma canção sobre perdas e volatilidade diante das circunstâncias. “Valley Green” tem arranjo com guitarras de doze cordas e um solo cheio de lirismo de Tim Ramsey, do grupo Fruit Bats.
“Year Away” é uma semente de dente de leão voando ao vento. Parece frágil mas é obstinada e, ainda que pareça levada pelo vento sem direção, algo parece dizer que ela só vai aonde quer. Este é um trabalho forte, baseado na beleza e na compreensão das nossas limitações como meio de obter força e adaptação constante. Um trabalho raro. Ouça e se apaixone.
Ouça primeiro: o álbum todo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.