Ed Motta chega ao seu melhor trabalho
Ed Motta – Behind The Tea Chronicals
44′, 11 faixas
(Dwitza/Virgin)
Uma olhada para a carreira de Ed Motta (que já dura 35 anos) mostra uma característica primordial. Ele não é um artista acomodado. E mais: ele não se contenta em abordar um único gênero ou estilo musical. Desde que surgiu para o disco com o grupo Conexão Japeri, em 1988, Ed transitou por funk, soul, jazz, pop, música brasileira, sempre dando sua versão pessoal. Pesquisador musical que é, o sujeito tem inúmeras influências e nuances, mas nunca podemos acusá-lo de não ser original ou copiar algum outro artista. No meio de tanta diversidade sonora, Ed segue sendo ele mesmo, imediatamente reconhecível ao primeiro acorde. Dentre tantas fases e ciclos em sua trajetória, ele já está há dez anos fazendo mais ou menos o mesmo som: um pop soul anglo-americano, com acenos ao jazz, influência de Steely Dan e uma palheta sonora riquíssima. Foi com “AOR”, o álbum lançado em 2013, que Ed encontrou abrigo nesta sonoridade, que era muito difundida nas FMs do início dos anos 1980 por aqui e que era acusada por roqueiros bobões como “comercial”. Era gente como Gino Vanelli, Peabo Bryson, Donny Hathaway, Luther Vandross, Christopher Cross, entre vários outros. Dez anos depois, Ed Motta é um equivalente desses caras e este novíssimo “Behind The Tea Chronicles” é a prova.
Como pesquisador e colecionador contumaz de discos, Ed Motta desenvolveu um gosto pela perfeição sonora, seja ela artística ou técnica. Ele zela por detalhes meticulosos na gravação, nos arranjos, na própria concepção de seus trabalhos. Em “Behind The Tea Chronicles” não é diferente: ele, não só arranjou a maioria das canções, como a maioria dos instrumentos. Convocou um time de bambas de estúdio para auxiliá-lo na tarefa de depuração máxima de suas influências e na conversão delas em inspiração. Ao seu lado estão o baixista Alberto Continentino, o tecladista Michel Limma e o guitarrista João Oliveira. Ed gravou boa parte dos vocais em Los Angeles, com a produção de Kamau Kenyatta e ainda contou com a presença de Paulette McWilliams e Philip Ingram entre seus cantores de apoio. Além disso, há participação da Czech FILMharmonic Orchestra, cujas contribuições foram gravadas em Praga. Ou seja, talvez este seja o álbum que mais fornece espaço para que Ed dê conta de sua criatividade detalhada e minuciosa. Ao longo das onze faixas (sendo uma delas, uma vinheta de menos de um minuto), o cantor apresenta ao ouvinte um mundo de referências que vão além da música. Estão presentes a paixão pelos seriados antigos de TV e pelos quadrinhos, sem falar nos filmes.
Seria impossível gravar um álbum desses no Brasil, não só pelo ponto de vista técnico, como pelo ponto de vista estético. A proposta é muito particular e busca atingir um público igualmente esclarecido e ciente do que está ouvindo. Na verdade, é bem legal perceber as pistas, referências e easter eggs que Ed vai deixando ao longo do caminho. Dá pra dizer que é um trabalho feito sob medida para seus admiradores, que entendem seu método de trabalho e criação, valorizando-o. Nas palavras do próprio: “Eu queria criar algo verdadeiramente único com ‘Behind The Tea Chronicles’. Filmes e séries de TV antigas sempre tiveram um impacto profundo na minha imaginação e musicalidade. Eu queria prestar homenagem a essas influências e usá-las como pontos de conexão para criar um álbum que não fosse apenas musicalmente envolvente, mas que também levasse os ouvintes a uma jornada nostálgica e cinematográfica. É uma ode à liberdade e um compromisso com a arte.”
Já na faixa de abertura, “Newsroom Customers”, é possível ouvir um fogo cruzado de Fender Rhodes, piano de cauda e clavinete, além de xilofone. Os vocais de Ed – que sempre cantou muito bem – estão a serviço da melodia, sem preocupação com destaque e ele vai unindo soul jazz e funk. “Slumberland” já traz um groove midtempo arrebatador, com direito a harpa, cordas, bateria, piano e cravo, lembrando levemente algo que poderia ser de uma trilha sonora de filme oitentista com pitadas de Steely Dan, especialmente de seu álbum “Gaucho”, de 1980. Já “Surely Far” tem jeito de faixa de “AOR”, seu álbum de 2013, no qual fez um passeio por sonoridades que hoje são chamadas de “yatch rock” ou “adult oriented”, mas que eram a tal “música comercial” lá de trás. Ainda há lindezas como a carnavalesca “Of Good Strain”, a balada jazzy “Shot in the Park” e a ótima “Deluxe Refuge”, que tem pegada samba-jazz, e a belezura “Gaslighting Nancy”, que também lembra Steely Dan.
“Behind The Tea Chronicles” é um álbum superlativo. Tem técnica, feeling, propriedade e ótimas canções. Deve ser o melhor trabalho do melhor momento da carreira de Ed Motta. Bravo.
Ouça primeiro: “Newsroom Customers”, “Slumberland”, “Surely Far”, “Deluxe Refuge”, “Gaslighting Nancy”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Parabéns pela melhor resenha sobre o novo trabalho do Ed Motta.