The Coral segue no topo da forma com “Sea Of Mirrors”

 

 

 

 

 

 

The Coral – Sea Of Mirrors
37′, 13 faixas
(Run On)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

É possível que “Sea Of Mirrors” seja um dos melhores discos de 2023. É engraçado porque, a princípio, ele parece um exercício de estilo, praticado por uma banda que não tem qualquer medo de arriscar suas fronteiras estéticas, tampouco receio de comprometer um eventual sucesso. Sim, porque The Coral está na ativa há vinte e um anos e nunca foi um grupo moldado para o megaestrelato. Seu doze discos – com este – são belos trabalhos de rock com temperos exóticos, que legitimam a jornada artística dos sujeitos, revestindo-a de um elemento em falta no mercado – sinceridade. O caso deste novo trabalho é emblemático: um álbum que revisita uma sonoridade raríssima, uma variante rock, psicodélica do chamado countrypolitan, ou melhor dizendo, a mutação urbana do country americano, decadente, soando, ao mesmo tempo como Love, Glen Campbell, Lee Hazlewood ou Gordon Lightfoot. Como o The Coral é um grupo excêntrico por excelência, há um fiapo de conceito por aqui, no caso, o retrato da Inglaterra pós-BrExit, mostrando um conjunto de personagens e paisagens decadentes e, cereja do bolo, a presença do sensacional Sean O’Hagan nos arranjos e na produção. O resultado é perfeito.

 

É bom que se diga: The Coral lançou um outro álbum junto com “Sea Of Mirrors”, o noturno “Holy Joe’s Coral Island Medicine Show”, que só saiu em LP na metade de cima do planeta, e ainda não tem data para chegar aos streamings. Por isso, vamos nos concentrar apenas em “Sea…”, uma vez que ele tem mais jeitão de álbum de carreira, de “lançamento oficial” e prometemos voltar quando o outro trabalho estiver disponível para mais pessoas. Quem tem boa memória há de lembrar do impressionante “The Coral Island”, disco duplo que o grupo lançou em 2021, sobre um hipotético hotel à beira mar, próximo de sua região natal de Wirral, perto de Liverpool. A forma exuberante daquele trabalho está presente e amplificada em “Sea Of Mirrors”. Não há um único momento desperdiçado ao longo das treze canções do disco, tudo muito bem feito, pensado e produzido, ultrapassando a barreira da suposta falta de criatividade que uma empreitada como esta pode suscitar nos mais novinhos e ranzinzas. Ao incorporar uma sonoridade com o vigor que faz aqui, The Coral mostra amadurecimento e domínio total de seu ofício.

 

Das treze faixas presentes aqui, três são vinhetas com menos de um minuto de duração, que ajudam a compor um painel único, em que as canções passam uma após a outra. Os arranjos de O’Hagan dão o revestimento orquestral necessário, soando com fidelidade total ao que era feito na virada dos anos 1960/70. O bom gosto no uso dos instrumentos é decisivo para que tudo soe perfeito. E, claro, para que tudo isso aconteça, é preciso ter boas, ótimas canções e isso o vocalista e cérebro do grupo, James Skelly, é um baita compositor e vocalista, que rege tudo o que acontece, em total sintonia com a produção de O’Hagan, que é um especialista em sonoridades empoeiradas de décadas atrás. Quem gosta disso – é o caso deste que vos escrever – consegue perceber detalhes muito sutis, como, por exemplo, os cinquenta segundos finais da belíssima “Faraway Worlds”, em que uma guitarra psicodélica soa ao longe, sobre uma base pianística que evoca andamento e ambiência de canções como “Wichita Lineman” ou “Where’s The Playground Susie”.

 

As belas composições chamam a atenção por aqui. “Wild Bird” parece algo composto por Gram Parsons, uma lin’deza de melodia desértica e heroica, com refrão belíssimo e cordas que rodopiam no ar. “North Wind” tem guitarras de western spaghetti e percussão que se dobram num andamento mais rápido, recriando a sensação de ver o mar nas areias escaldantes. “That’s Where She Belongs” tem as mesmas guitarras, mas num andamento diferente, que é totalmente evocativo da psicodelia pop-rock sessentista, com uma lindeza ímpar, enquanto “Dream River” é bela, triste, cheia de achados melódicos surpreendentes, tudo desaguando na lindeza da melodia adornada por xilofones, percussões e diversos mimos instrumentais. “Child Of The Moon” já tem violões acústicos imprevisíveis, que emolduram os vocais de Skelly, com sutis intervenções de cordas. “Oceans Apart” tem uma aura morriconesca no ar, com direito a participação do ator Cillian Murphy declamando parte da letra. “The Way You Are” é uma lindeza folk, cheia de violões acústicos que se dobram sobre si mesmos sob o sol do deserto. E “Cycles Of The Seasons” é mais um achado que tangencia o country mais melódico e decadente, típico dos cowboys de rodeio, que vivem num trailer perto da grande metrópole.

 

“Sea Of Mirrors” é um discaço, uma pequena pérola que existe em seus próprios termos e regras. É um intervalo no corre corre diário, oferecendo uma música que clama por atenção aos seus detalhes. E, repito, traz um desfile de canções perfeitas. É muito pra 2023.

 

Ouça primeiro: todo o álbum

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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