Novo álbum de Sophia Chablau recupera o rock nacional que importa
Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo – Música do Esquecimento
43′, 14 faixas
(Risco)
Não que Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo esteja no mainstream. Não mesmo. Acho que só agora o grupo paulistano chegou no midstream. Mas que dá um alento no coração ouvir este segundo álbum dos meninos, isso dá. Porque, de uns tempos pra cá, o rock nacional para um público maior, soa como um mix de bandas cover xexelentas de creed e red hot chili peppers em busca de um palquinho chinfrim com Capital Inicial, CPM22 e Raimundos. Felizmente, não há o menor traço, o mais mínimo resíduo, o ínfimo vestígio dessa lógica emburrecedora e limitante na obra deste grupo sensacional. Se o álbum de estreia homônimo, lançado há dois anos, era um pequeno oásis de talento tentando se sobrepor ao deserto de possibilidades, este segundo trabalho é uma bem-vinda e sonora expansão de ideias, visões e resultados. “Música do Esquecimento”, ainda que mais maduro e focado, ainda retrata o maior atributo de Sophia e sua turma: a juventude exuberante, pensante, sensível, que teima em olhar o mundo com senso crítico e, claro, padecer por isso. Em meio a um rebanho estético paupérrimo, estes sujeitos se destacam fortemente. Não tem erro: “Música do Esquecimento” já ganha credenciamento automático para nossa lista de melhores de 2023. Bora ver o porquê.
“Música do Esquecimento” traz os mesmos atores do primeiro álbum, com a adição do músico pernambucano Vitor Araújo, que divide a produção com Ana Frango Elétrico e contribui com arranjos e instrumentos diversos ao longo das quatorze faixas. Sua presença oferece mais perspectivas sonoras para o grupo, o que resulta numa sonoridade mais elaborada, porém jamais bundona ou acomodada. Pelo contrário. Arranjos de cordas e teclados pipocam aqui e ali, dando mais estofo e repertório e, como dizem por aí, potencializando o efeito das letras. Sendo assim, os temas abordados – vida, sexo, amor, decepções, sentimentos, inadequação – ganham revestimento mais profundo e isso só ajuda. Há momentos inesperados e sensacionais, como o início neurótico de “Minha Mãe É Perfeita”, cuja letra isenta de defeitos a mãe e o irmão, condenando, no entanto, a filha e o pai à imperfeição ou aos complexos psico-mitológicos da vez. O instrumental é rock alternativo puro e simples, com esporro, barulho e confusão. Não poderia haver início mais legal para este álbum.
“Quem vai apagar a luz”, logo em seguida, lembra que Sophia e Enorme Perda de Tempo são herdeiros de uma tradição tropicalista, no sentido Mutantes do termo. Dá pra notar a mesma anarquia sonora, toques de rock clássico, metais malucos, arranjo criativo e uma melodia contagiante. A participação de Negro Léo nos vocais dá um toque universal ainda maior. Aliás, a banda, formada por Theo Ceccato (bateria, percussões), Téo Serson (baixo) e Vicente Tassara (guitarras e voz), além da própria Sophia, que se reveza entre bateria, violão, guitarra e vocais, é absolutamente adaptável às circunstâncias. Em “Segredo” os vocais dela são insinuantes ao declarar um amor secreto – contradições, contradições – que topa tudo para existir, até mesmo os disfarces e malabarismos, em meio a versos como “me fode que eu sou sua” ou “mas se você quiser, eu viro um segredo seu, não faço barulho nem chamo atenção de ninguém”. “Embaraço Total” é uma linda canção de amor em sua essência, que conta também com vocais do guitarrista Tassara, em meio a um arranjo que exala desolação e incapacidade de resolver os sentimentos.
A delicadeza de “Qualquer canção”, vulnerável e intensa, com arranjo climático que valoriza os vocais de Sophia (e o sensacional verso “eu não vou fazer qualquer canção só pra dizer o que eu sinto agora”) se contrapõe ao bom humor e à alegria total que é “As coisas que não te ensinaram na Faculdade de Filosofia”, que traz estética tropicalista que lembra o arranjo original de “Baby”, com Gal Costa, com ótimas intervenções de flauta e teclados. “Não é pessoal, só achei por muito tempo ser normal ficar parado no mesmo mesmo lugar” é um verso que mostra como a banda também oferece letras espertíssimas e afiadas. “Ultimo Sexo” é uma outra baita canção, que lida com a finitude sutil das coisas e a impossibilidade de voltar atrás, tudo em meio a um clima psicodélico em câmera lenta e a vontade do inviável: “eu queria ter terminado com um abraço, um bye-bye, um “I love you very much” mas só podia ter sido esse último sexo”. “Neurose”, curtinha, é um desabafo numa quase-marchinha de carnaval psicótico, enquanto “beijar morder trepar” chega a lembrar bandas noventistas de punk em versão demo. “Baby missil” também tem DNA tropicalista e aponta para o fim do álbum, que chega na forma de duas baitas canções: “Time to say goodnight” e uma espécie de pós-música, que é “Deus Tesão”. Ao fim de tudo, a sensação de ter ouvido um baita álbum.
“Música do Esquecimento” é sensacional e mostra uma banda em evolução, sem parecer com nada disponível no cenário nacional. No rodapé da página dos sujeitos no site Bandcamp, está, em caixa-alta: NÃO EXISTE ARTE SEM CULTURA / BOTE PRA FORA/ PERCA SEU TEMPO: SE ORGANIZE. / POR UM MUNDO ONDE TODOS TODAS E TODES POSSAM SONHAR / E ESTE SONHO MUDE VIOLENTAMENTE O MUNDO. É isso, gente.
Ouça primeiro: todo o álbum
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.